ESTA SEMANA NO
"SOL"
Filipa Melo
"O adultério é a face oculta do casamento"
Um livro que alimenta uma paranoia doce para uns, para outros dolorosa, pode ser terapêutico também, entre o guilty pleasure e a erudição, Dicionário Sentimental do Adultério é um desses raríssimos exemplos em que História, ciência, curiosidades ou revelações picantes se combinam com a ironia num objeto de cultura todo sedutor.
Na memória de quem viveu a derrocada do melhor período do jornalismo
cultural entre nós, poucos terão esquecido como o Mil Folhas -
suplemento cultural do Público editado por Filipa Melo no seu ano de
lançamento, em 2001 - se destacou como uma das publicações mais
influentes no domínio literário. Desde 1990 dedicada a esta vertente
jornalística, Filipa Melo assume-se como «uma crítica literária da velha
guarda», no sentido em que se abstrai tanto quanto possível das
circunstâncias, para se entregar a uma espécie de ortodoxia em que,
primeiro que tudo, estão os livros, a leitura, numa abordagem que
contorna outras acrobacias publicitárias e o ruído que tem bichado o
silêncio necessário para se chegar à literatura.
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Depois da estreia no romance em 2001, com Este é o meu corpo, o
segundo tem-lhe exigido um bestial hiato, exemplar num momento em que os
que praticam a arte do romance o fazem de forma tão incontinente. Acaba
de publicar Dicionário Sentimental do Adultério (Quetzal), que é de
certo modo um regresso, depois de, em 2015, ter publicado Os Últimos
Marinheiros, uma reportagem para a coleção Retratos da Fundação
(Fundação Francisco Manuel dos Santos). O Dicionário foi apresentado há
dias pelo emérito secretário de Estado do Humor, Ricardo Araújo Pereira,
e Filipa integra, como independente, a lista de Carlos Carreiras (PSD),
nas autárquicas em Cascais. Depois de anos a escrever regularmente
crítica e a orientar oficinas de escrita, numa parceria com a
Booktailors, vai coordenar uma pós-graduação em escrita de ficção na
Universidade Lusófona.
Sem lhe pedir para revelar algo de mais pessoal, gostava de saber…
Se eu pratiquei adultério (risos).
Gostava de saber se houve alguma história que a levou a escrever sobre o adultério.
Vai-me perguntar se é autobiográfico?
Não, mas aqui o adultério surge-nos quase como uma
instituição oculta, uma perspectiva sobre esse lado sombrio das
sociedades. Por outro lado, há sobre este fenómeno uma leitura muito
pessoal. Gostava de saber o que a atraiu a escrever sobre o tema.
Há uma história muito curiosa, com a escritora francesa Marie
Darrieussecq, que tem um livro [“Truismes”] em que a protagonista se
transforma numa porca.
Quando comecei a escrever sobre adultério pensei:
Deus queira que não me aconteça o que lhe aconteceu a ela, em que uma
das primeiras entrevistas que lhe fizeram começaram por perguntar-lhe se
era autobiográfico (risos). Eu estava com medo também que me
perguntassem, mas não, não é. No entanto, todos os casos que aparecem
numa das entradas, que se chama “marginália ou as coisas como elas são”,
todos esses casos são reais. Foram-me contados por amigos, por
conhecidos, casos de que fui sabendo. E, na verdade, o adultério é a
face oculta do casamento. É o lado negro da lua.
Existiu desde que
existe o casamento. E, socialmente, desde Roma Antiga, desde leis
augustas, a Lei Júlia, passou a ser um crime público. Portanto, é uma
realidade privada, escondida e secreta, mas é uma realidade pública
desde Roma Antiga, e embora hoje em dia já não se penalize o adultério, é
condenada socialmente. Mas a par desse lado, e sobretudo da condenação
moral e social quando acontece com figuras públicas, há a dimensão
privada, que é fascinante para mim, e que diz muito sobre os instintos,
sobre o balanço entre os instintos e as convenções nas relações
amorosas.
Qual foi o ponto de partida para o livro?
O tema conjugava-se com este formato de um dicionário sentimental, ou
seja, de uma espécie de almanaque pessoal. É uma abordagem muito
pessoal a um determinado tema, e a escolha do adultério foi pensada
porque está em tudo: na literatura, na História… Há casos de que nos
podemos socorrer na vida real, pessoas que conheces. Portanto, é um tema
que dava para tudo.
E houve alguma história em particular que espoletou esta investigação ou que foi central à organização do livro?
Quando comecei a pensar na estrutura do livro, e arranjei um programa
específico porque na escritas de dicionário tens de controlar as
entradas, e não é muito fácil não extravasá-las quando estás a escrever…
O que pensei foi ir de A a Z, e dar o exemplo em A, que é Abraão, e em
Z, que é Zeus. De Abraão a Zeus percebi então qual era a extensão do
tema. A primeira entrada é sobre a importância absolutamente crucial
para as três religiões abraâmicas um caso de adultério, ou de barriga de
aluguer, se se quiser. Que é o caso da relação de Abraão, Sara e Agar, e
que dá origem a tudo. Depois na mitologia grega, tens Zeus, que é o
maior adúltero de sempre. Só isso bastava, cobria tudo.
Mas as três religiões abraâmicas divergem hoje sobre a forma como encaram e lidam com o adultério.
Sim, o judaísmo e, particularmente, a sociedade israelita, repudia os
bastardos, impedindo-os e à sua descendência de casarem com judeus. Ou
seja, impede que sejam cidadãos de Israel. Impedem o fruto do adultério,
e isso prende-se com a raiz do judaísmo, que é fundado numa transmissão
de sangue, numa linhagem. Portanto, o adultério é tido como uma
corrupção da essência.
Se nas sociedades ocidentais e de matriz judaico-cristã a
carga punitiva do adultério se perdeu, no mundo islâmico é um dos
aspectos que revela maior violência sobre as mulheres, enfrentando estas
o apedrejamento, ao passo que aos homens o adultério é perdoado.
Não tens em nenhum caso uma regra. A poligamia é perfeitamente aceite
nas culturas islâmicas. Depende, portanto, de sociedade para sociedade.
Se a lei civil acompanha ou não as orientações religiosas… Mas não
existe uma regra universal, nem uma regra específica para cada uma das
religiões. Podes encontrar em África duas tribos que distam 20
quilómetros uma da outra, e uma é polígama e outra pratica a monogamia.
Não há uma regra e por isso é que acho muito interessante este tema,
porque remete as questões do adultério para aquilo que me interessava
mais: reflectir quanto da pulsão para a infidelidade é biológica e
quanto é que é societal. A conclusão a que chego na investigação que fui
fazendo para este livro é de que, de facto, a fidelidade é uma pura
construção humana. São pouquíssimas as espécies animais que são
monogâmicas. Mesmo as monogâmicas dão umas voltas por fora, experimentam
outros parceiros… Portanto, a monogamia enquanto fidelidade absoluta é
quase um mito. E é tanto nos animais como nos humanos.
O que está na origem deste mito?
A monogamia e a fidelidade são uma construção, antes de mais para a
preservação da espécie, para vingar o mais forte, para não haver perda
de esperma… Eu conto no livro como, em algumas espécies, os machos, no
acto do acasalamento, vedam os orifícios das fêmeas para que não sejam
fecundadas num determinado período, para que vingue o seu gene.
Ao olhar para a forma como as religiões e as próprias leis
foram lidando com o adultério este parece ser um fenómeno que gera uma
espécie de pavor matricial, com o corpo da mulher e a disputa sobre quem
sobre ele manda é um dos aspectos nucleares em todas as sociedades
políticas. Muitas vezes parece que o grande tema em debate nas
sociedades se prende com a forma como se exerce o controlo sobre o corpo
da mulher, que é aquele que, dando vida, promete um futuro. E isto vai
desde a imagem da mulher até questões que mexem com a sua privacidade e o
seu papel na sociedade.
Nas primeiras sociedades, surgiu a par com a questão da posse da
terra, a posse do corpo da mulher. A mulher foi empurrada cada vez mais
para o interior da casa. Isso é uma forma de controlo, uma forma de
poder. Na civilização judaico-cristã, e particularmente no catolicismo,
tens o marianismo, uma concepção muito forte do papel da mulher seguindo
o exemplo da Virgem Maria, que concebe o seu filho sem pecado… E o
marianismo é também uma forma de controlo ou de orientação quanto à
postura da mulher, relativamente ao seu corpo, e que passa pela
fidelidade ao marido, fidelidade à religião, e até à Virgem Maria.
A
questão do corpo da mulher e da sua posse foi, portanto, central desde
sempre. E a emancipação da mulher foi muito lenta. No século XIX, e há
um exemplo que dou no livro disto entre nós, de que os maridos podiam
facilmente interditar as mulheres e dá-las como loucas, inclusivamente
se quisessem trocá-las por outras. Isto vai para além da posse do corpo,
e significa uma posse total: da mente, do espírito, da liberdade… O
caso a que me refiro no livro é o de Maria Adelaide, que se passa já no
início do século XX, e se trata de um caso extraordinário de uma mulher
que se apaixonou quando tinha já 48 anos e um filho de 26. Apaixonou-se
por um chofer com a idade do filho e foi dada como louca por acção do
marido. A perícia foi feita por Júlio de Matos, Egas Moniz e José Sobral
Cid, que disseram que ela evidenciava “loucura lúcida”, que era
“originariamente tarada”, coisas completamente absurdas se pensarmos
sobre elas hoje em dia, mas o que está por trás disto é o pavor quanto à
liberdade da mulher poder dispor do seu corpo. Algo que ultrapasse a
convenção do casamento, da idade… A condenação do adultério está, desde
sempre, ligada à condenação da fruição do corpo por parte da mulher. A
história do adultério é uma história do domínio masculino.
Dois aspectos onde se nota mais a assinatura autoral neste dicionário é um lado humorístico…
Irónico.
Se há uma análise rigorosa, nutrida pelos factos históricos,
muitas vezes parece ouvir-se o riso de uma mulher. Sem haver qualquer
tentação revisionista, há um olhar do século XXI e de uma mulher que não
deixa de sublinhar como este está longe de ser um assunto arrumado.
A base deste livro é uma investigação, portanto, a primeira
perspectiva que se encontra aqui é a da constatação. Ou de confirmação,
se havia algumas suspeitas que tinha já relativamente à forma como o
adultério foi evoluindo ao longo dos tempos. Fui confirmando essas
suspeitas, que tinham a ver com essa noção de que o poder da mulher
sobre o seu corpo foi constantemente cerceado. Mas, porque tem um lado
privado e secreto, o adultério tem um lado picante, interdito, e só por
isso já propicia que, em algumas histórias, uses o humor, a ironia, mais
raramente o sarcasmo, esse só em momentos em que há mais uma indignação
do que propriamente uma crítica.
Mas tal como a imagem da senhora que
aparece na capa, que é a [Condessa de] Castiglione, uma cortesã francesa
muito conhecida. Gostei muito desta imagem exactamente porque vemos
nela uma cortesã a espreitar por uma moldura de uma foto familiar. É a
imagem da amante a espreitar pela moldura do convencional da família. No
fundo, isto é o resumo do livro: mostrar uma realidade que está por
detrás das fotografias. Supõe-se que as amantes não figuram nos álbuns
de família. Mas algures estarão na memória. Há um caso que pus na secção
da “Marginália”, um caso que eu conheço, de uma mulher que foi amante
de um homem 20 e tal anos e que, quando ele ficou doente, não o pôde
visitar no hospital, nem pôde sequer ir depois ao funeral. Isto não
obstante ter sido uma pessoa determinante na vida daquele homem durante
vinte e tal anos. Há um lado escondido que está sempre à espreita, e há
portanto esse outro olhar sobre aquelas vidas.
Esses casos são-nos dados mas despidos dos elementos que identificariam as pessoas?
Sim, não identifico as pessoas. São casos que conheço, e até as duas
histórias que parecem anedotas… A do voo livre de um caniche num
edifício muito alto – e deixamos por isto para não estragar a surpresa
–, ou a de uma senhora que se embrulha em papel higiénico e se oferece
ao marido no dia a seguir a tê-lo traído pela primeira vez, são
histórias reais, tal como a entrevista que fiz a um detective
particular… Aquilo que ele diz é real. Muitas dessas histórias parecem
ficção, e julgo que isso se prende com esse olhar do que está do outro
lado da fechadura. São as coisas que sabemos que existem mas sobre as
quais falamos baixinho, aos segredinhos. O livro tem por isso esse lado
picante e, em termos literários, propicia um tipo de escrita muito
apetitosa também, que passa por juntar à informação o trabalho para
capturar a atenção do leitor, com um fio que une esses pormenores
picantes, fait divers, curiosidades.
O trabalho do livro foi o de tecer
uma espécie de filigrana a partir de um tema que é sério e importante na
definição da forma como as sociedades foram evoluindo e como se
processam as nossas vidas privadas, e, ao mesmo tempo, permite essa
conjugação do que é sério com o que é risível, e o que raia quase o
anedótico. De tão escondido que está, mas à mostra. É o chamado gato
escondido com o rabo de fora.
Há aquela conhecida frase da Margaret Atwood que ao passo que
os homens têm medo que as mulheres se riam deles, as mulheres têm medo
que os homens as matem.
O grande receio dos homens é que os filhos que as mulheres dizem ser deles afinal não sejam.
Isso quem o disse?
Isso digo-o eu (risos).
Mas voltando à frase de Atwood, se a relação amorosa e sexual
para os homens parece pôr em causa a sua afirmação pessoal e
identitária, para as mulheres muitas vezes parece ser uma questão de
vida ou de morte.
Podes falar de um fenómeno curioso que eu abordo no livro que é o
efeito de Coolidge, que é transversal à maioria dos mamíferos, e que diz
que os machos se cansam rapidamente da fêmea. Depois do acto sexual têm
um período refractário, em que descansam, e, quanto mais relações
sexuais têm com a mesma fêmea, mais longo é esse período refractário,
até chegarem ao limite, quando perdem o interesse pela fêmea. E é muito
curioso como, no caso das vacas, os cientistas pintaram a fêmea
rejeitada, alterando-lhe as manchas, puseram-lhe ainda outro odor, e
mesmo assim o macho rejeitou-a. Portanto, existe qualquer coisa
biológica que leva a que os homens procurem ter mais parceiras do que as
mulheres.
.
As mulheres querem preservar, desde logo querem ser
fecundadas, e depois precisam de protecção para a cria. Assim, procuram o
macho que as proteja, portanto, procuram a constância, enquanto os
machos procuram fecundar o maior número de fêmeas, para que os seus
genes vinguem. Se calhar é estranho para os leitores que eu dê estes
dados ou que fale assim, muitas vezes trocando macho por homem, mas é
exactamente a mesma coisa. A base é biológica, animal. Como disse no
início, a fidelidade é uma absoluta convenção.
Em que é que a sua percepção se alterou com a investigação que fez?
Já acreditava nisto antes, mas depois da investigação que fiz para
este livro estou ainda mais convicta de que nós nos condicionamos para
amar para sempre. Isso é uma convenção que depois vai sendo gerida pelos
homens e pelas mulheres a partir desta base biológica, sendo que os
homens não deixam nunca de ter este instinto predador e um desejo de
expansão, a tentativa de implantação do gene, e as mulheres têm um
instinto de preservação. Mas é muito difícil falar dos homens e das
mulheres… O que acho é que as questões ligadas à fidelidade se calhar
têm de ser revistas de todo. Falo nisto no livro: a ideia de que antes
se casava e de que se era feliz para sempre. Agora existe a monogamia
serial, ou seja: vamos casar seis vezes durante a vida e cada uma delas
será para sempre. Isso é irónico, mas é natural. Embora vivamos ainda
com um enorme peso moral sobre aquilo que nos é instintivo.
A noção de que o maior medo dos homens é a de que os filhos que criam não sejam afinal deles em que é que se expressa?
Foi o que determinou que o adultério fosse condenado sobretudo, ou
quase em exclusivo, pelo lado da mulher. O homem pode trair, não tão mal
visto socialmente por fazê-lo, ao passo que para a mulher é gravíssimo.
É uma espécie de traição eterna, porque o homem fica a educar o filho de outro e…
É infrutífero em termos de espécie, em termos da herança genética. É
um engano, uma traição… Essa é a verdadeira traição. Existe traição
maior do que essa? É capaz de ser a maior que se pode imaginar. Dizer
alguém: este é o teu filho, não o sendo. Fazerem-te criar um filho que
não é o teu.
Isso justifica uma diferença de atitude face ao adultério consoante os géneros?
É mais fácil ouvires um homem numa mesa de café vangloriar-se por
trair a mulher do que uma mulher vangloriar-se por trair o marido.
Persiste esse lugar-comum de que os homens traem mais do que as
mulheres, mas depois há uma objecção lógica a essa ideia: os homens
traem as mulheres com outras mulheres, e, estatisticamente, nalguns
países, como Inglaterra, sabe-se que maioritariamente traem com outras
mulheres também casadas. Portanto, tens aí um primeiro tabu. Existe esta
convicção de que as mulheres traem muito menos do que os homens, mas
qualquer investigação que comeces a fazer sobre o adultério leva-te a
concluir que essa é uma noção completamente errada. As mulheres traem
tanto como os homens.
O detective João Santos, que eu entrevistei, diz
que elas são é muito mais cautelosas. Exibem menos, mas traem tanto como
os homens. De qualquer modo, o adultério nunca foi uma causa. Não é uma
bandeira feminista. O adultério é uma prática oculta, que, por ser
sexual, diz respeito à vida privada de cada um, e que, no século XXI, se
espera que não seja regulamentada, pelo menos no mundo civilizado.
Depois a forma como é encarado isso relaciona-se com as convicções de
cada um, com o livre arbítrio. Não se pode neste tema falar em causas, e
não se espera que surja um grupo de mulheres a reivindicar: “Nós também
traímos” (risos). Mas, na verdade, hoje em dia, 2017, não será muito
difícil fazer a experiência – se uma mulher comunicar às pessoas à sua
volta: “Eu traí o meu marido”, e se ao lado tivermos um homem a
confessar: “Eu traí a minha mulher”, o peso de censura social é brutal
sobre a mulher e não tanto sobre o homem. É uma das marcas da diferença
de estatuto em termos do exercício da liberdade sexual.
E o que lhe disseram os casos que investigou?
Por de trás de todas as histórias de adultério há sempre um lado
muito triste, porque há uma perda. Quanto mais não seja porque, num
casamento, quando trais a outra pessoa, perdeste a imagem que tinhas de
ti próprio quando casaste. Nem é o traíres o outro, tu é que já te
sentes diferente daquilo que foste. Procuro dizer isso no livro: tu não
vais à procura de outra pessoa mas daquilo que tu és, da outra pessoa em
que te tornaste.
O tema do adultério é, por isso, muito complexo,
porque tem a ver com as motivações muito profundas das pessoas e que as
leva a decidir estar com alguém, sexualmente, ocasionalmente ou
partilhando uma vida.
É um tema profundissimamente complexo. Passando
por muitas outras questões, até pelo lado económico. Não há dados a
comprová-lo, mas acredito que uma das razões por que se trai muito mais
agora é o facto de não haver condições financeiras para as pessoas se
divorciarem. Portanto, o adultério que se pensa ser acima de tudo uma
questão moral, tem também muito a ver com circunstâncias práticas.
Acompanha a evolução da sociedade. A poligamia, por exemplo, é praticada
pelos homens que têm capacidade de sustentar um maior número de
mulheres, portanto, é uma questão também financeira.
Dá a sensação de que este livro surge num momento em que pode
estabelecer uma linha de ruptura entre o passado e o futuro do
adultério, uma vez que a revolução tecnológica veio facilitar em muito a
busca de parceiros fora do casamento. Há uma série de aplicações, como o
Tinder e outros, que parecem ter exponenciado essa predisposição para a
traição, providenciando condições de secretismo, meios de contacto…
Eu não acredito que se traía mais porque existe o Tinder, ou porque é
mais fácil. Sempre se traiu, sempre se continuará a trair. Acho que
mudam as circunstâncias, e sobretudo muda o conhecimento sobre a
realidade, isso sim. Não sei se haverá uma revolução sobre a realidade.
Acho que não. Há uma entrada no livro em que questiono como se traía no
século XIX, uma vez que não havia espaços públicos. Aliás, havia o
privado e o público, não havia espaços intermédios. E eu pergunto: onde é
que as pessoas traíam.
A vida doméstica das mulheres era muitíssimo
vigiada, em sociedade também. Era uma vida bastante claustrofóbica em
termos de cerceamento das liberdades, sobretudo nas classes mais altas…
entre os burgueses havia sempre muitos olhos sobre tudo. Então ,
pergunto onde é que as pessoas traíam. Onde é que tinham relações? Mas
tinham, é evidente. Quando vais ao Tinder, uma das coisas que me faz
confusão é o modo como vês a sociedade toda a assumir que está à procura
de alguém com quem ter relações… Enfim, não sabemos se sexuais, mas
algum tipo de relação. Não me parece mal, até me parece bem, passa por
assumir algo que é natural: a dinâmica das relações humanas e sexuais.
Portanto, está mais à vista, agora, se isso vai ser uma revolução em
termos de prática em si… Não acredito. O que essas tecnologias novas
proporcionam é o espreitar-se mais facilmente pela fechadura para o
quarto dos outros. É o lado voyeurista. Mas o que se passa no quarto dos
outros sempre se passou e sempre se há-de passar. E felizmente.
Este livro parece também um estudo sobre aquilo que
editorialmente mais hipótese tem de vingar nos nossos dias. Não estou a
falar de oportunismo, mas há aqui uma inteligência não só na escolha do
tema, como vai buscar a tendência dos leitores para procurarem livros
que bebem na História…
Que lhes dão informação…
Um livro, do ponto de vista do marketing, genial. Talvez não tenha pensado o livro assim.
Não.
Mas não é uma abordagem literária, senão por um lado jornalístico.
Embora, tenha ficção também.
Mas houve estratégia neste sentido?
Não. Desse ponto de vista, o tema de “Os últimos Marinheiros”
[reportagem para a colecção “Retratos da Fundação”, publicada pela
Fundação Francisco Manuel dos Santos], é tão ou muitíssimo mais
importante do que o adultério. Portanto, podia-se dizer que aí também
teria havido uma estratégia editorial. Ou o tema da morte, que na altura
em que publiquei o meu romance, “Este é o meu corpo”, que é um romance
sobre a morte, surgiu antes dos CSI, e das séries dos patologistas se
terem popularizado.
O livro saiu em 2001, antecedendo a vaga que veio a
seguir em que a morte foi um tema muito premente na literatura, no
cinema, nas séries de televisão. Portanto, em termos de marketing são
todos mais ou menos equiparados. E não foi estratégia (risos). Em termos
de escrita, este livro foi para mim um divertimento. “Este é o meu
corpo” foi um romance que teve muito sucesso, foi extremamente bem
recebido, o que teve o seu peso, evidentemente. Não só em termos de
responsabilidade em relação ao segundo, que ainda não saiu, mas teve uma
excelente recepção internacional e durante muito tempo, praticamente 10
anos, me fez circular pelo estrangeiro a apresentar o livro, sobretudo
na Europa. E com reacção muito intensas da parte dos leitores, porque
era um tema muito sensível. A herança daquele livro durou muito tempo.
Entretanto, eu sou jornalista, freelancer… Trabalhei apenas cinco anos
no quadro de uma empresa, e trabalho há 25 anos. O que eu tive de fazer
durante estes foi trabalhar, e só por isso é que o segundo romance não
apareceu antes. Agora, depois das crianças estarem mais crescidas, pude
voltar a escrever, e comecei pela reportagem dos marinheiros.
Em 2001, não era ainda mãe?
O romance acompanhou a minha primeira gravidez. A minha filha Mariana
tem a idade do livro. Se “Os Últimos Marinheiros” é claramente um livro
de reportagem, este “Dicionário Sentimental do Adultério” é um
exercício de prazer, de retomar a escrita, e tem também ficção, é uma
escrita literária… (Não é uma reportagem.) E foi um exercício de
escrita, mas não foi uma estratégia de marketing. Esta colecção existia
já na Quetzal, é o segundo título de uma colecção que começou com o
título “Dicionário Sentimental do Futebol”, do Rui Miguel Tovar.
E a ideia do tema foi sua?
Sim, mas a colecção já existia. Em França existe uma colecção de
enorme sucesso, que se chama “Dictionnaire amoureux” e que parte mais ou
menos da mesma ideia. Ou seja, pedir a um autor que faça uma abordagem
pessoal de um determinado tema. Com um formato semelhante ao do
dicionário: com entradas, com uma esquematização a partir de pequenos
textos, que correspondem a entradas, e um tema.
* É melhor comprar o livro.
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