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IN "AÇORIANO ORIENTAL"
21/06/17
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Sem direito a esquecer
A fim de entender a repressão política, essa doença sazonal de certas
democracias, nada melhor do que uma visão “interna”, isto é, um olhar
que a vê – e sofre – por dentro das regras do sistema. A melhor forma de
realizar esse propósito nem sempre é o calhamaço teórico-crítico. A
literatura, quando feita com arte, encarrega-se plenamente da tarefa.
Marx dizia que, para entender a França da Restauração dos Bourbons, ele
preferia Balzac aos historiadores. No mesmo sentido, um preparado
acadêmico pode narrar o que foi a “Jornada de África” de D. Sebastião,
mas apenas um escritor pode imaginar e nos dizer os pensamentos do
infortunado rei durante a Batalha de Alcácer-Quibir.
Um Perigoso Leitor de Jornais, de Carlos Tomé, há pouco lançado,
honra o desígnio para o qual foi escrito: por um lado, reaver a memória
que o autor tem de seu avô, um honrado carteiro em Ponta Delgada; por
outro, recuperar a repressão política durante o período salazarista.
(Aqui no Brasil tivemos uma ditadura feroz, mas até hoje os escritores
não querem saber disso – até que surja um Carlos Tomé brasileiro.)
O livro em pauta, assim, apresenta duas vertentes temáticas bem
definidas: a primeira narra a prisão de Carlos Ildefonso Tomé,
unicamente porque distribuía, como carteiro, um jornal do Partido
Comunista, obviamente considerado como subversivo pelo sistema então
vigente. Os desdobramentos familiares e emocionais desse ato são
constrangedores para a história de qualquer país civilizado. Estão ali
os sofrimentos da esposa Maria José e de seus nove filhos, que ficaram,
de uma hora para outra, sem os pequenos rendimentos do provedor da
família, mas, mais do que isso, perderam a presença do esposo e pai,
verdadeiro esteio moral para todos. Viraram-se como puderam, e não
faltaram algumas pessoas solidárias que os ajudavam, algumas um
pouquinho à claras, como o Doutor Luís Bettencourt; outras, no esperável
anonimato. Os tempos eram difíceis. Instaura-se, então, a fome, que
estará presente do início ao fim do romance, a fome brutal e sem
paradeiro, a fome que esmaga e humilha. As rendas do protagonista não
eram apenas os salários fixos, mas também provinham de um pequeno
negócio familiar, que era a confecção de soldadinhos de chumbo, tarefa
de que participavam todos. Mesmo essa cessou, e a perda das formas de
modelar adquire um caráter emblemático no enredo íntimo dessa tragédia
pública.
A outra vertente do romance – mas não separada dela, muito ao
contrário – pertence à esfera política, à ditadura. Esta se apresenta
tentacular e totalizadora, e a ela não é impedido nada: prender sem
causa, juntar os detentos em condições deploráveis e transportá-los para
sucessivas prisões, sonegar informações dos processos a que respondiam,
transformar os carcereiros em seres de humor arbitrário e tóxico,
aceitar as delações como coisa normal e, em suma, exercer o sadismo em
toda sua dimensão. Senhores do mundo e do universo, esqueciam-se de que
todo esse edifício ver-se-ia degradado e, por fim, cairia ao solo. Mas
enquanto eram reis, exerciam seu reinado com pavorosa dedicação. Se a
história de um homem é também a história de seu país, este romance
consegue, de maneira eloquente, recriar o que foi Portugal dos anos 30
do século passado, através de Carlos Ildefonso Tomé, carteiro.
Assim, aquilo que era uma memória pessoal e familiar, ascende, por
via literária, a uma denúncia: quem ler Um Perigoso Leitor de Jornais
terá inúmeros momentos de autêntico prazer estético pela soberba
condução da narrativa, mas, ao mesmo tempo, conhecerá um episódio real,
desses que não temos o direito de esquecer, especialmente em tempos de
ascensão de ideologias de extrema direita, que podem resultar em amargas
recorrências históricas no mundo todo. Estejamos alertas. Este romance
nos chama à reflexão e, penso eu, poderia ser lido com proveito em todas
as escolas. Os jovens, conhecendo “por dentro” o que foi a ditadura,
serão esforçados artífices e apoiantes ferrenhos da democracia, o único
sistema político que, passem seus problemas, pode assegurar o bem-estar
das pessoas e de uma nação.
* Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil
IN "AÇORIANO ORIENTAL"
21/06/17
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