09/06/2017

CATARINA PIRES

.




«Se te chegar um vídeo
que expõe a intimidade de
alguém, não o partilhes.
Pensa: e se fosse contigo?»

O que passará na cabeça das pessoas para perderem a capacidade de se pôr no lugar do outro, de criarem empatia, de se afligirem, de tentarem ajudar, de temerem o pior, qualquer coisa, mas não de desligarem a humanidade para ligarem o smartphone?

Há uns dias, um vídeo espanhol apareceu no feed do meu Facebook. Vários amigos o partilharam apesar de ser do verão passado. Mesmo a propósito. Uma rapariga e um rapaz enrolados numa duna, numa praia, aos beijos, quase sexo. Alguém filma. Nisto, a miúda levanta-se e diz: «São seis da manhã. Em dez minutos, este vídeo vai estar a circular em todas as redes sociais. Às 09h30, a Marin vai avisar-me de que os seus amigos o viram e o reenviaram a todos os seus grupos do WhatsApp. Três dias depois, vai sair no jornal, vão comentá-lo na rádio e num qualquer programa de televisão. Até ao verão, vão comentar a minha vida sem sequer me conhecerem. E vocês? Vocês vão fazer parte disso?» À interpelação final segue-se um apelo: «Se te chegar um vídeo que expõe a intimidade das pessoas, as humilha ou as torna vulneráveis, não o partilhes. Pensa: e se fosse contigo?»

«E se fosse consigo? E se fosse a sua filha ou a sua irmã ali em cima?» Foi isto que gritei, feita louca, a duas, três, sei lá quantas pessoas que, em dezembro do ano passado, filmavam uma mulher que tentava atirar-se do telhado de um prédio. Fui chamada ao local por conhecer a mulher, e, entre a multidão especada de olhar fixo no que se desenrolava lá em cima, eram vários os que filmavam. Não eram jovens nem adolescentes. Era gente adulta, com filhos e mulheres e maridos e irmãos e pais e idade para ter juízo. Mas um smartphone na mão. Juro que não entendo. O que passará na cabeça de pessoas aparentemente não sociopatas, aparentemente não psicopatas, para perderem a capacidade de se pôr no lugar do outro, de criarem empatia, de se afligirem, de tentarem ajudar, de temerem o pior, qualquer coisa, mas não de desligarem a humanidade para ligarem o smartphone e filmarem como se aquilo não fosse real e aquela mulher não existisse agora e não pudesse, num segundo, deixar de existir? O que sentiriam se fosse um dos seus ali em cima, indeciso entre a vida e a morte? Filmariam?

Não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti. Os meus pais ensinaram-me isto. Eu ensino isto aos meus filhos. É tão básico. E, no entanto, no verão passado aquele vídeo espanhol e, recentemente, um vídeo de uma violação feito por jovens universitários portugueses – pessoas, portanto – publicado por eles nas redes sociais, para ser partilhado por outras pessoas com pais e irmãos e maridos e mulheres e filhos e pelo Correio da Manhã, onde trabalham pessoas com pais e irmãos e maridos e mulheres e filhos. Juro que não entendo. Além de ser doentio, é crime. A privacidade está protegida por lei.

O que pergunto é: como se para isto? Pergunto-o primeiro como mãe. Tenho dois filhos pré-adolescentes e tenho medo de que não tenham a liberdade de crescer que eu tive, que tenham de passar a vida a olhar para trás do ombro, a ver se estão a ser vigiados, escrutinados, filmados, fotografados, que não possam dar um passo em falso, como eu dei, tantos, fazer más figuras, cometer erros, dizer disparates, enfim, crescer e viver, com medo de serem expostos, gozados, chantageados. O trauma que deve ser. Não sei a resposta, mas sei que passa pela educação, pelo diálogo, por conseguir transmitir como é importante respeitar o outro e pôr-se no lugar dele.

Mas também o pergunto como jornalista. Há mais de um mês, o meu filho falou-me no Desafio da Baleia Azul. «É como se fosse uma roleta-russa, mãe. Começou na Rússia, já está no Brasil e os youtubers estão todos a avisar para não jogarmos aquilo. No fim, os miúdos são obrigados a suicidar-se. Devias escrever sobre isso.» No meio de tanta coisa, não lhe dei atenção. Daí a duas semanas, a notícia em todo o lado. Já casos em Portugal. Segundo Pedro Marques, do Centro de Internet Segura, a quem enviei um e-mail para tentar perceber o que estava por detrás da histeria instalada, há indícios muito fortes de que ter-se-á tratado de um hoax – notícia falsa –, com origem no site russo de notícias Novaya Gazeta, e que, propagado sem verificação dos factos, acabou por tornar-se um problema real.

A velocidade, a falta de tempo para ir atrás de uma história e investigá-la, para não se ser ultrapassado, a partilha acrítica de tudo o que cheira a viral e tantas vezes o esquecimento de que dentro de cada história há pessoas e vidas assusta-me. Tenho medo de que a caça aos cliques vença por cansaço o jornalismo, aquele em que a empatia ocupa um lugar determinante.

«Põe-te no lugar do outro, de quem te vai ler, de quem entrevistas, daqueles sobre quem escreves.» Foi uma das coisas que me ensinaram quando cheguei aqui, ao jornalismo e à NOTÍCIAS MAGAZINE. Ainda não me esqueci. Quando me esquecer, despeçam-me.


P.S.: A NOTÍCIAS MAGAZINE faz 25 anos e eu estou com ela há vinte. Mais de mil edições, percebi outro dia. Se fechar os olhos, flashes e flashes, como dizem que acontece quando morremos. Quase metade da vida, nesses flashes. Tenho sorte em ser jornalista da NOTÍCIAS MAGAZINE


IN "NOTÍCIAS MAGAZINE"
06/06/17


.

Sem comentários: