«Se te chegar um vídeo
que expõe a intimidade de
alguém, não o partilhes.
Pensa: e se fosse contigo?»
O que passará na cabeça das pessoas para perderem a capacidade de se pôr no lugar do outro, de criarem empatia, de se afligirem, de tentarem ajudar, de temerem o pior, qualquer coisa, mas não de desligarem a humanidade para ligarem o smartphone?
Há uns dias, um vídeo espanhol apareceu no feed do meu
Facebook. Vários amigos o partilharam apesar de ser do verão passado.
Mesmo a propósito. Uma rapariga e um rapaz enrolados numa duna, numa
praia, aos beijos, quase sexo. Alguém filma. Nisto, a miúda levanta-se e
diz: «São seis da manhã. Em dez minutos, este vídeo vai estar a
circular em todas as redes sociais. Às 09h30, a Marin vai avisar-me de
que os seus amigos o viram e o reenviaram a todos os seus grupos do
WhatsApp. Três dias depois, vai sair no jornal, vão comentá-lo na rádio e
num qualquer programa de televisão. Até ao verão, vão comentar a minha
vida sem sequer me conhecerem. E vocês? Vocês vão fazer parte disso?» À
interpelação final segue-se um apelo: «Se te chegar um vídeo que expõe a
intimidade das pessoas, as humilha ou as torna vulneráveis, não o
partilhes. Pensa: e se fosse contigo?»
«E se fosse consigo? E se fosse a sua filha ou a sua irmã ali em
cima?» Foi isto que gritei, feita louca, a duas, três, sei lá quantas
pessoas que, em dezembro do ano passado, filmavam uma mulher que tentava
atirar-se do telhado de um prédio. Fui chamada ao local por conhecer a
mulher, e, entre a multidão especada de olhar fixo no que se desenrolava
lá em cima, eram vários os que filmavam. Não eram jovens nem
adolescentes. Era gente adulta, com filhos e mulheres e maridos e irmãos
e pais e idade para ter juízo. Mas um smartphone na mão. Juro que não
entendo. O que passará na cabeça de pessoas aparentemente não
sociopatas, aparentemente não psicopatas, para perderem a capacidade de
se pôr no lugar do outro, de criarem empatia, de se afligirem, de
tentarem ajudar, de temerem o pior, qualquer coisa, mas não de
desligarem a humanidade para ligarem o smartphone e filmarem como se
aquilo não fosse real e aquela mulher não existisse agora e não pudesse,
num segundo, deixar de existir? O que sentiriam se fosse um dos seus
ali em cima, indeciso entre a vida e a morte? Filmariam?
Não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti. Os
meus pais ensinaram-me isto. Eu ensino isto aos meus filhos. É tão
básico. E, no entanto, no verão passado aquele vídeo espanhol e,
recentemente, um vídeo de uma violação feito por jovens universitários
portugueses – pessoas, portanto – publicado por eles nas redes sociais,
para ser partilhado por outras pessoas com pais e irmãos e maridos e
mulheres e filhos e pelo Correio da Manhã, onde trabalham
pessoas com pais e irmãos e maridos e mulheres e filhos. Juro que não
entendo. Além de ser doentio, é crime. A privacidade está protegida por
lei.
O que pergunto é: como se para isto? Pergunto-o primeiro como mãe.
Tenho dois filhos pré-adolescentes e tenho medo de que não tenham a
liberdade de crescer que eu tive, que tenham de passar a vida a olhar
para trás do ombro, a ver se estão a ser vigiados, escrutinados,
filmados, fotografados, que não possam dar um passo em falso, como eu
dei, tantos, fazer más figuras, cometer erros, dizer disparates, enfim,
crescer e viver, com medo de serem expostos, gozados, chantageados. O
trauma que deve ser. Não sei a resposta, mas sei que passa pela
educação, pelo diálogo, por conseguir transmitir como é importante
respeitar o outro e pôr-se no lugar dele.
Mas também o pergunto como jornalista. Há mais de um mês, o meu filho
falou-me no Desafio da Baleia Azul. «É como se fosse uma roleta-russa,
mãe. Começou na Rússia, já está no Brasil e os youtubers estão
todos a avisar para não jogarmos aquilo. No fim, os miúdos são obrigados
a suicidar-se. Devias escrever sobre isso.» No meio de tanta coisa, não
lhe dei atenção. Daí a duas semanas, a notícia em todo o lado. Já casos
em Portugal. Segundo Pedro Marques, do Centro de Internet Segura, a
quem enviei um e-mail para tentar perceber o que estava por detrás da
histeria instalada, há indícios muito fortes de que ter-se-á tratado de
um hoax – notícia falsa –, com origem no site russo de notícias Novaya Gazeta, e que, propagado sem verificação dos factos, acabou por tornar-se um problema real.
A velocidade, a falta de tempo para ir atrás de uma história e
investigá-la, para não se ser ultrapassado, a partilha acrítica de tudo o
que cheira a viral e tantas vezes o esquecimento de que dentro de cada
história há pessoas e vidas assusta-me. Tenho medo de que a caça aos
cliques vença por cansaço o jornalismo, aquele em que a empatia ocupa um
lugar determinante.
«Põe-te no lugar do outro, de quem te vai ler, de quem entrevistas,
daqueles sobre quem escreves.» Foi uma das coisas que me ensinaram
quando cheguei aqui, ao jornalismo e à NOTÍCIAS MAGAZINE. Ainda não me
esqueci. Quando me esquecer, despeçam-me.
P.S.: A NOTÍCIAS MAGAZINE faz 25 anos e
eu estou com ela há vinte. Mais de mil edições, percebi outro dia. Se
fechar os olhos, flashes e flashes, como dizem que acontece quando
morremos. Quase metade da vida, nesses flashes. Tenho sorte em ser
jornalista da NOTÍCIAS MAGAZINE
IN "NOTÍCIAS MAGAZINE"
06/06/17
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