Tolerância de
ponto-final-parágrafo
Se Deus - ou alguém em sua representação
oficial - voltasse à terra na véspera do 13 de Maio, o que veria?
Crentes funcionários públicos em peregrinação, crentes funcionários
privados em abstinência espiritual ou não abençoados
funcionários-de-todo-o-Mundo-uni-vos em absoluto desdém pela
intolerância? A tolerância de ponto decretada pelo Governo
socialista-laico é uma reminiscência daqueles habituais costumes que não
deveriam fazer do hábito a razão última da sua permanência. Ou será
apenas a habitual e moderna tendência transgénica do cultivo das rosas
sem espinhos? Sacrossanto caminho este. Caminhar para a cruz à distância
do calvário, sacrificando a exegese ao sabor de uma maioria que a
sustente.
No caso concreto da visita
papal, a maioria até fez o pleno. À excepção de vozes individuais,
nenhum dos partidos com representação parlamentar manifestou qualquer
discordância ou reserva sobre a subserviência do pequeno país laico ao
enorme país católico. A laicidade do Estado, porém, deveria estar para
além do respeito: ela vive da equidade. Quando todo o espectro político
não levanta a questão da desigualdade entre a celebração pública das
convicções mais íntimas, esqueçam a canonização da santa Lúcia: a única
beatificação da semana pertence a António Costa e à aparição do seu
pleno parlamentar. Não me conforta o argumento de que esta é matéria
estritamente reservada ao Governo. Recordo-me de como PS, BE e PCP
criticaram a decisão de Passos Coelho em não conceder tolerância de
ponto aos funcionários públicos pelo Carnaval.
Ponto
final à tolerância, final de parágrafo. A tolerância de ponto não é um
fim por si só, uma qualquer forma hábil de devolver qualidade ao lazer
das famílias ou sadio ócio ao agregado. Não são férias acrescidas,
diminuição da idade da reforma ou redução do horário de trabalho. Está
longe de ser um direito. A tolerância de ponto é uma benesse. Neste
caso, entre públicos e privados, desigual. Neste caso, entre crentes e
não crentes, absurda. Como entendo que isto da fé é para ser levado
muito a sério, questiono-me como se permite aos partidos que continuem a
brincar às religiões. Se fosse ateu, estaria abalado na minha crença.
Enquanto agnóstico, limito-me a desconfiar. Adeus à virgem.
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
10/05/17
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