As reviravoltas do
alojamento local
Não deixa de ser curioso que a limitação à propriedade privada
proposta pelo PS não incida sobre os que têm capacidade para adquirir um
prédio por inteiro, mas só aos que têm um ou outro apartamento.
Decorridos quase três anos desde a entrada em vigor do diploma que
veio autonomizar a figura do alojamento local e rever o seu regime
jurídico, o que promoveu o aumento da oferta deste tipo de
estabelecimento e o crescimento do sector do turismo em Portugal, temos
assistido a sucessivas reviravoltas à volta deste tema, não estando
isento de discussões.
Primeiro, a divergência vincada dos nossos tribunais. Agora, o
projeto-lei apresentado pelo grupo parlamentar do PS a propor alterações
ao referido diploma.
Em jeito de resumo, as questões que se colocam são essencialmente as
seguintes: podem ou não os condomínios limitar o direito de propriedade e
de uso que cada um dos condóminos faz do seu apartamento? Trata-se o
alojamento local de uso habitacional, comercial ou outro? Viola ou não o
título constitutivo da propriedade horizontal (PH)?
Com o devido respeito, que é muito, não posso concordar com o mais
recente Acórdão da Relação do Porto que, em oposição ao Supremo Tribunal
de Justiça, veio considerar que a atividade de alojamento local não cai
no conceito de “habitação”, dando assim acolhimento à tese do
condomínio de que viola o título da PH. Por duas razões.
A primeira, porque confunde o que interessa para efeitos de
tributação e o que releva para efeitos civis e administrativos. É
verdade que para efeitos fiscais, há uma distinção entre o arrendamento e
a prestação de serviços de alojamento e, por isso, é importante
perceber a que título provêm as receitas pagas pelo utilizador do
apartamento. No entanto, para aferir que tipo de uso é dado ao espaço em
causa, tal distinção não tem qualquer impacto. Faz algum sentido
dizer-se que por ser um turista (i.e. “pessoa que viaja por diversão ou
recreio dentro ou fora do País”), deixa de ser habitação e passa a ser
alojamento?
Então se não for um turista em passeio e for uma estadia em
trabalho ou uma visita a familiares ou amigos doentes? Já passa a ser
habitação? Faz algum sentido que o vizinho que faça contratos de
arrendamento de dois ou três dias (nos termos da lei, atualmente estes
contratos nem sequer têm prazo mínimo) tenha tratamento diferente e
privilegiado em relação ao vizinho que explora a sua casa como
alojamento local? Não faz, a partir do momento em que a ocupação é para a
mesma finalidade (dormir, descansar, comer…). Não interessa ao
condomínio se o condómino está enquadrado na categoria B ou F.
A segunda razão prende-se com o facto de ter considerado que está
intrincado no conceito de habitação o caráter de permanência e
estabilidade, o qual não existe no alojamento local. Ora, se assim
fosse, um proprietário que tenha um apartamento no Algarve em que apenas
passa alguns dias do ano ou, até mesmo, que dá de arrendamento uma
semana por ano no verão, estaria a violar o título da PH que destinasse a
referida fração a habitação, o que não faz sentido. Mais, esse
arrendamento não deixa de ser classificado para fins habitacionais só
pelo facto de ter uma duração de três, sete ou quinze dias.
E o que dizer da proposta do PS? Creio ser de louvar a iniciativa de
tentar estancar a discussão que gira à volta da relação entre os
condomínios e as entidades exploradoras do alojamento local. No entanto,
claramente que errou na solução. Ao invés de vir definir expressamente
qual o uso/afetação exigível para cada uma das modalidades de
estabelecimento, pondo dessa forma termo à discussão e dúvidas, junto
dos condomínios, autarquias e entidades exploradoras, veio simplesmente
propor a submissão da abertura de novos alojamentos locais em prédios
habitacionais ao escrutínio dos vizinhos, independentemente do tipo de
afetação previsto na PH para a fração em causa. Para além de levantar
sérias dúvidas quanto à sua constitucionalidade – já que limita de forma
genérica e desproporcional o direito fundamental à propriedade privada –
e, bem assim, de criar novos conflitos ao não esclarecer, por exemplo,
em que moldes deve ser tomada a deliberação, o legislador continua sem
se preocupar em responder à questão essencial: qual a afetação do
alojamento local?
Não deixa de ser curioso que a limitação à propriedade privada agora
proposta pelos dois deputados socialistas não vai incidir sobre aqueles
que têm maior capacidade financeira para adquirir um prédio por inteiro e
afetá-lo ao alojamento local, mas sim aos que apenas têm um ou outro
apartamento como forma de obter um rendimento adicional.
Associada Coordenadora do Departamento de Imobiliário da CCA ONTIER
IN "OBSERVADOR"
26/05/17
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