ESTA SEMANA NA
"SÁBADO"
O romance inédito que o filho de
.Humberto Delgado quer travar
Elsa, escrito até 1963, tem muito de autobiográfico. Um filho foi a tribunal para impedir a edição da obra, mas perdeu
"Há uma mulher na vida de Delgado" - quando um jornal brasileiro
publicou uma notícia com este título, nos anos 60, não estava a
referir-se à mulher do general, Iva, que ficou em Portugal; nem à sua
secretária e companheira brasileira, Arajaryr Campos. Referia-se a
"Elsa", a personagem principal que dá título ao romance autobiográfico
que o adversário de Salazar desejava publicar.
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Era suposto ser
uma graça, dando a entender que se tratava de um caso amoroso, para
depois no texto se explicar que essa mulher era a personagem do romance
que o general estava a ultimar. Só que, sem saber, o jornalista não
andou assim tão longe da verdade no título. "Hoje ressurgem novos
sentidos por trás desse jogo jornalístico", admite à SÁBADO Frederico
Delgado Rosa, autor de Humberto Delgado - Biografia do General Sem Medo e
neto do biografado.
Nas páginas do romance, o general descreve a
relação entre Armando, personagem que não podia ser mais parecida com o
autor, e Elsa, a personagem principal, inspirada numa mulher 15 anos
mais nova, por quem Humberto Delgado se apaixonou nos anos 40.
Frederico
Delgado Rosa não quer para já revelar a identidade da rapariga. Mas não
se chamava Elsa e também não era empregada doméstica (como a
personagem) - pelo menos no tempo em que se relacionou mais directamente
com o avô.
O neto do marechal (posto a que Delgado foi
promovido após a morte) desvendou à SÁBADO que se tratava "de uma mulher
interiormente emancipada, com um intelecto efervescente e um gosto
acentuado pela literatura, pelo teatro e pelo cinema".
A família
de Humberto Delgado chegou a conhecê-la, embora não soubesse da ligação
entre ambos. A vida afectiva deste opositor do regime não foi
propriamente linear. Na Biografia do General Sem Medo, o autor já se
tinha referido à paixão do avô pela actriz Maria Spranger, que
participou numa peça escrita por ele em 1940, sete anos depois de ter
nascido o seu primeiro filho.
Mas Frederico Delgado Rosa recusa
sequer usar termos como infidelidade. "Não considero adequado esse
termo, que me parece associado a uma noção absoluta e moralista. A
correspondência evidencia sentimentos, não me cabendo tecer especulações
de outra ordem." As cartas trocadas entre o avô e essa mulher pertencem
a um espólio particular.
Salazar e as torturas da PIDE
O
regime do Estado Novo é descrito sem poupança de detalhes, a começar
pelo líder, Salazar - "Não é dado outro nome ao ditador: ele surge com
todas as letras, assim como a PIDE", garante Frederico Delgado Rosa.
Também são referidas as torturas e mortes que ocorriam na sede da
polícia política, e que o general acompanhou bem de perto enquanto
esteve asilado na embaixada do Brasil, mesmo ao lado, pois ouvia os
gemidos e gritos dos torturados.
As 185 páginas dactilografadas
de Elsa foram entregues à família em 2005, por uma professora
brasileira, Luísa Moura, depois de terem estado na posse de descendentes
de Arajaryr Campos, a secretária que também foi assassinada pela PIDE
em Espanha, a 13 de Fevereiro de 1965 (há 52 anos).
No ano
passado, enquanto organizava uma exposição na Sociedade Portuguesa de
Autores sobre a figura de Humberto Delgado (membro da SPA entre 1942 e a
data da sua morte), José Jorge Letria teve acesso ao romance e alertou
Manuel S. Fonseca, da editora Guerra e Paz, para a importância de editar
aquele livro, disponibilizando-se mesmo a apoiar financeiramente a
edição.
A editora avançou, em articulação com Iva Delgado, a
filha do marechal que até aqui tinha tratado de editar as obras do pai:
as Memórias de Humberto Delgado e as Crónicas Militares e Políticas da
II Guerra Mundial.
Só que, pouco depois do primeiro anúncio
relacionado com a edição de Elsa, em Setembro do ano passado, o filho
homónimo de Humberto Delgado intentou uma providência cautelar no
Tribunal da Propriedade Intelectual. Pediu para suspender de imediato a
edição da obra, e anular todos os actos relacionados, enquanto não lhe
fosse concedida a possibilidade de exercer os seus direitos, como
herdeiro de Humberto Delgado.
Se a obra fosse mesmo editada, o
filho pedia que fosse aplicada à Guerra e Paz uma sanção superior a 500
euros por dia, de acordo com a sentença, a que a SÁBADO teve acesso.
O
filho invocou danos morais por "nunca ter sido consultado nem ter dado
autorização para a publicação da obra" e chamou ainda a atenção para o
facto de as 185 páginas dactilografadas não terem a assinatura do pai,
pelo que caso se concluísse que a obra não era do pai isso representaria
"uma violação à sua memória e bom-nome".
Mas o tribunal deu
como provados os indícios de que "Elsa é um romance inédito da autoria
do marechal Humberto Delgado". E indeferiu a providência cautelar,
considerando que quaisquer proveitos recebidos por Iva Delgado devem ser
partilhados entre os herdeiros (por acordo ou através de processo
judicial).
Embora não esteja impedida de avançar, a editora
Guerra e Paz suspendeu a publicação da obra, para tentar um acordo entre
os dois filhos do marechal e ainda os descendentes da filha já
falecida, Maria Humberta. Manuel S. Fonseca disse à SÁBADO que havia
perspectivas de agendar uma reunião entre os vários herdeiros até ao fim
desta semana, para garantir que todos se podem pronunciar sobre a
publicação da obra e partilhar as receitas dos respectivos direitos de
autor. O objectivo é impedir que um conflito familiar ensombre a
importância do romance inédito.
Para o neto e biógrafo, isso
também será sempre mais importante do que as partilhas entre os
herdeiros: "Pessoalmente, entendo que Humberto Delgado pertence ao Povo
Português, desde que os seus restos mortais estão no Panteão Nacional,
para não dizer desde 1958."
* Realmente Humberto Delgado pertence ao Povo Português, a sua vida devia ser contada nas escolas, incluindo as paixões.
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