O melhor de todos
A escola é uma casa velha e abandonada, o professor morreu cedo e não me deu tempo para mostrar tudo o que fez por mim.
O
sol bate no que sobra do prédio, está assim há anos, esburacado, sem
portas e com desenhos nas paredes. Uma casa grande e velha, daquelas que
se avista aqui e ali, com o quintal engolido pelo mato e o telhado
prestes a ruir. E é tudo quanto resta da minha escola primária. Ainda
tem vista para o campo do Marítimo e hoje há treino da equipa sénior,
mas o lugar está mudado e até a mim me custa a lembrar como era tudo há
40 anos, quando desci de dois a dois os degraus e entrei na sala do
professor Baltasar.
Eu tinha seis anos, o cabelo curto como se
fosse um rapazinho e usava botas ortopédicas. A minha mãe levou-me pela
mão, mas eu sabia o caminho de cor. E não chorei, nem tive medo, nem
vergonha, nem inventei histórias e dores de barriga. Todos os miúdos
arranjavam uma desculpa, um truque qualquer, alguns eram devolvidos à
procedência e só voltavam no ano seguinte. A minha mãe ficou à espera,
mas eu queria muito aprender a ler, era por causa das legendas dos
filmes da televisão e das fotonovelas da ‘Crónica Feminina”.
E
sentei-me à frente, não fosse a informação perder-se até ao fundo da
sala, onde estava um espantoso mapa mundo. Da janela, víamos o mar e, às
vezes, o professor Baltasar ficava parado a olhar. Outra vezes, contava
histórias sobre os barcos, as ondas e as nuvens. Histórias divertidas,
daquelas que dava vontade de rir. O meu irmão dizia que era tudo
mentira, o que me ofendia muito. No mundo havia três ou quatro pessoas
na categoria de deuses, o professor Baltasar era uma delas. Eu não tinha
dúvidas que, de todos os professores, me tinha calhado o melhor.
O
meu irmão até podia dizer que era tudo mentira, mas eu não vacilava. O
professor era o melhor e não era à toa que, daquelas quatro salas da
escola, ninguém tinha uma vida regalada como a nossa. Palavras difíceis
para escrever cinco vezes cada uma? Cópias e contas? Os trabalhos de
casa eram coisas como escrever poemas, ver o episódio da telenovela e
fazer o resumo na aula. E quando a aula ficava aborrecida, o professor
organizava visitas de estudo, mesmo por ali, nos arredores e ensinava
coisas que não vinham no livro de contas ou no de leitura. A maior parte
estava apenas dentro da cabeça, naquela imaginação contagiante.
Aprender
era, segundo o professor, a capacidade de fantasiar, de imaginar, de
rir das nossas asneiras. E é claro que aquilo de não ter trabalhos de
casa, de aprender como se fosse a brincar não agradava a todos. Uma vez
por outra, naquelas reuniões de mães, havia queixas, o professor não
ensinava e ensinar há 40 anos metia régua. Era o tempo em que, quando as
coisas corriam mal, as mães aconselhavam: “chegue-lhe que ele merece”.
Na minha sala isso do “chegue-lhe” era raro, acho que me lembro de todas
as vezes em que o professor Baltasar perdeu a paciência e tirou a régua
da gaveta. A mim coube-me quando fizemos todos uma expedição pelas
bananeiras até ao campo do Marítimo.
Mas tudo isto são histórias,
coisas com 40 anos, que já só existem na minha cabeça. A escola é uma
casa velha e abandonada, o professor morreu cedo e não me deu tempo para
mostrar tudo o que fez por mim. Eu gostava de o ter por aqui ainda para
conversar, para falarmos da escola, de como era antes e de como é bom
saber que o melhor de nós vive connosco, na nossa imaginação e nas
memórias que guardamos. E de como eu seria outra pessoa se não o tivesse
tido na minha infância a contar histórias sobre o mar, os barcos e as
ondas.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
05/02/17
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