O dote da City
Cada vez é mais claro que o ‘Brexit’ tem o dom de transformar o negócio da City num dote a que nenhum país europeu é indiferente
No dia em
que os britânicos votaram a favor do divórcio com a União Europeia, meia
City londrina deu os primeiros passos para acionar os planos B, de
'Brexit'. Gestores de hedge funds, banqueiros e investidores
não querem ficar sem acesso ao mercado único europeu de 500 milhões de
pessoas e preparam o que pode ser o maior processo de deslocalização da
indústria financeira para o outro lado do Canal da Mancha e, com ele, o
arrastar de cerca de cem mil empregos. O colosso HSBC, por exemplo, foi o
primeiro a avisar que vai transferir mil empregos para Paris.
Ainda
é muito cedo para prever a derrota dos hábeis negociadores de Downing
Street. Mas não é tarde para antecipar que mais que um pesadelo, a saída
britânica da UE pode ser uma oportunidade para a City. A Velha Europa
há muito que disputa o negócio bilionário londrino sem grande sucesso e,
talvez por isso, o tenha tentado minar ou limitar - através da pressão
política em Bruxelas ou através de processos judiciais. O Banco Central
Europeu perdeu recentemente um processo em tribunal para importar a
atividade financeira em euros de Londres para os países da moeda única. O
argumento da instituição liderada por Mario Draghi sai agora reforçado:
o Reino Unido não só fica fora do euro como vira as costas à máquina e
estrutura institucional europeia. E, desta vez, os europeus estão pouco
dispostos a consentir cláusulas de exceção ou um regime especial para o
governo de Theresa May. A ideia britânica de criar um ‘passaporte de
direitos’ para banqueiros já foi barrada no continente e os avisos
sucedem-se, o último de Juncker no discurso do Estado da União: “Se
quiserem livre acesso ao mercado interno, têm de aceitar as liberdades
fundamentais, incluindo a dos trabalhadores”.
O
caminho vai ser longo até à saída efectiva do Reino Unido da UE, mas é
cada vez mais claro que o ‘Brexit’ tem o dom de transformar o negócio da
City num dote a que nenhum país europeu é indiferente. O êxodo dos
banqueiros vai depender das ofertas e garantias negociadas num ambiente
que costuma ser opaco, cheio de ‘canais clandestinos’ e um regimento de
lobistas. As duas cidades do eixo franco-alemão, Paris e Frankfurt, são
as favoritas caso Londres acabe mesmo por ficar fora de jogo. Ambas as
cidades pertencem a países com o maior poder de decisão, peso e
influência na União Europeia, capazes de desempenhar o papel que até
agora pertencia a Downing Street. O papel de interferir nas regras da
supervisão financeira, de limitara aprovação de novos rácios, de atenuar
os limites aos bónus das administrações ou travar a introdução de uma
taxa Tobin. No fundo, de bloquear as muitas tentativas de regular, a
sério, o setor. A imagem da indústria financeira como o vilão da crise
já lá vai. O risco de marcha atrás no quadro regulatório e a revisitação
sofisticada e polida das regras para níveis pré-subprime existe. O mérito da mão invisível está de regresso.
* Editora executiva
IN "VISÃO"
14/09/16
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