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IN "OBSERVADOR"
06/07/16
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Grupo de lesados da grande
literatura masculina
Em boa verdade, as mulheres, se fossem inteligentes, tratariam de
imitar as figuras femininas idealizadas pela literatura masculina. Esta
mania de decidirmos por nós como somos será a nossa perdição.
Queria escrever sobre a mais recente polémica com o Facebook:
empresa tão moderna, tão hipster, tão tecnológica, tão
universo-aos-nossos-pés que não deixa as senhoras que lá trabalham
vestirem-se de forma sexy. A propósito disso fui reler as notícias de
Tim Hunt, o Nobel que acha uma maçada as mulheres cientistas: que os
cientistas e as cientistas apaixonam-se e as mulheres choram quando são
criticadas. Aqui, apanhei a verborreia de V.S. Naipaul sobre mulheres escritoras, vi tudo encarnado e decidi alargar o arco deste texto.
A saber: a mania que alguns egos masculinos têm de que a forma de
agir, de trabalhar, de pensar, de escrever, de o que quer que seja
masculina é a forma correta, o padrão, a ordem natural do mundo
funcionar. E que a maneira feminina – e sim, eu voto sempre na
existência de diferenças entre os sexos e nunca na igualdade intrínseca
entre os xy e as xx (o que é muito diferente de assumir que há papeis,
profissões, talentos predeterminados para cada sexo) – é um desvio à
norma, fruto de emoções desordenadas e irracionalidades várias,
sobretudo algo que as mulheres têm de corrigir se querem ser levadas a
sério pelos guardiães da seriedade (também conhecidos como elementos do
sexo masculino).
Este padrão masculino vai ao ponto das alucinações de Naipaul: a
maneira de escrever certa e com qualidade é a masculina. O curioso é que
este tipo de opiniões é levado a sério ou, pelo menos, reproduzido sem
ser em tom de escárnio em jornais decentes. Quando merecia a zombaria
que oferecemos a sugestões estrambólicas como a de retirar dos cursos de literatura
as obras dos escritores masculinos, brancos e das potências
colonizadoras. Os maluquinhos esquerdistas americanos querem extirpar os
cursos de Shakespeare e Chaucer. Naipaul, porventura com o ego
insuflado de que padecem os temperamentos artísticos e políticos, como
bem ilustrou Paulo Tunhas, opina que a escrita de Jane Austen ou das
Brontë ou de George Eliot é ‘unequal to him’ (vá, vamos todos desmaiar
ao mesmo tempo de comoção pelo tamanho do talento másculo de Naipaul).
Eu percebo que um homem goste mais do estilo literário de outro
homem. Eu, (não) por acaso, tendo a apreciar mais a escrita feminina.
Venero Thackeray e Evelyn Waugh e P.G. Wodehouse e Somerset Maugham,
ando atrás de Julian Barnes e Peter Carey e disputo quem quer que diga
que em Portugal há quem escreva melhor que o Bruno Vieira Amaral (que
até sobre futebol é bom de ler). Mas, e estou pronta a constituir uma
claque literária feminina, pegando por exemplo nos colegas nobelizados
de Naipaul, os meus Nobel da literatura preferidos são Alice Munro e
Doris Lessing. Munro – além de um talento para juntar umas palavras às
outras que Naipaul invejaria se tivesse juízo – tem uma escrita, pela
forma e pelos temas, que nunca viria de um homem. E o machismo da gente
esclarecida dos movimentos comunistas anticoloniais que é descrito por
Lessing dificilmente seria relatado no masculino.
O que V.S. Naipaul diz – sonsamente – é que o ponto de vista feminino
só tem lugar na grande literatura se for apresentado (e distorcido) por
um homem. Em boa verdade, as mulheres, se fossem inteligentes,
tratariam de imitar as figuras femininas idealizadas pela literatura
masculina. Esta mania de decidirmos por nós como somos, em vez de
aceitar a recomendação masculina, será a nossa perdição.
O pior é que o padrão masculino não se fica pela literatura. Na empresa Facebook,
segundo o folclore, as indumentárias são informais e os homens
trabalham de calções e t-shirt. É o melhor dos mundos: os homens estão
cómodos e as mulheres – como vários escritores masculinos já asseveraram
– são seres assexuados incapazes de perderem uns minutos dos seus dias a
escrutinar um agradável par de pernas do sexo oposto visíveis debaixo
de uns calções. Já os homens, pobres almas, têm de ser protegidos deles
próprios e das distrações causadas pelas minissaias e decotes femininos.
Como os homens são impetuosos e não se conseguem conter – os escritores
masculinos (e os extremistas islâmicos também) garantem que sim – têm
de mudar as mulheres para acomodar o mundo às necessidades masculinas.
Nos laboratórios de investigação, como Tim Hunt escancarou, os
contributos das mulheres são vistos (pelos ‘porcos chauvinistas’, como orgulhosamente se apresentou)
como menores que os constrangimentos que a interação entre os sexos
causa ao trabalho dos verdadeiros cientistas: os xy.
Acho também piada
ao mito do choro feminino. É ver nas redes sociais e na comunicação
social como as mulheres são imensamente mais criticadas e insultadas
pelos valentes que se escondem atrás do teclado do computador; e como
somos inundadas de lixo sexista constantemente. Nunca dei por ataques de
choro. Já tantos homens – como Tim Hunt – quando levam como resposta a
liberdade de expressão daquelas que, fazendo uso dessa mesma liberdade
de expressão, ofenderam, correm a vitimizar-se e a dizerem-se mártires
do feminismo fundamentalista e do politicamente correto.
E, por fim, vemos o mesmo na política. Hillary Clinton. Péssima
política, deve a carreira ao marido – é proibido dizer o contrário. E
com essa característica imperdoável numa mulher decente: é ambiciosa. O
desejo de poder e de dinheiro está, com abundante ‘grande’ literatura
masculina a argumentar para este lado, reservado aos homens e às
pérfidas vamps dos romances oitocentistas.
Não interessa nada que muitos
herdeiros políticos tenham falhado – Ted Kennedy, Jeb Bush,… –, que as vitórias tenham sido engendradas pela própria
e que os escândalos sexuais de Bill Clinton sejam um flanco fácil de
atacar. Hillary é mulher, faz discursos que são o cúmulo da sanidade
numa campanha de candidatos que parecem alimentados a alucinogénios,
pelo que é péssima. Já um trauliteiro com expressão verbal sub-humana,
que se vê como o principal tema das eleições presidenciais (e do
universo), nos discursos passa três quartos do tempo a referir as
audiências que trouxe aos programas onde participa e a insultar os
jornalistas que o criticaram – esse, bem, é um génio político que vai
revolucionar a política mundial.
Descansem em paz, neurónios.
IN "OBSERVADOR"
06/07/16
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