ESTA SEMANA NA
"SÁBADO"
Ir à escola no intervalo da quimioterapia
Sessões individuais por Skype, testes no hospital e apoio de professores no IPO. Quando o cancro muda a vida de uma criança, a esperança pode estar nas aulas
O exame nacional de Física e Química chegou ao Instituto Português de
Oncologia (IPO) do Porto escoltado pela polícia. À espera da prova, numa
sala do piso térreo do hospital, estavam dois professores vigilantes e
apenas um estudante do 11º ano: Alexandre Curopos, de 17 anos.
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Durante
três horas – teve direito a meia hora extra por estar doente – respondeu
"às questões que sabia" e saiu "confiante num resultado para passar".
Depois, regressou ao isolamento no serviço de Pediatria, onde entrara
pela primeira vez seis meses antes, em Janeiro de 2014. "Deixei de ir às
aulas quando comecei a fazer quimioterapia, no início desse ano. Tive
6,5 a Física e Química, mas como a nota do 1º período eram boa (17),
acabei a disciplina com 13", diz, explicando que o enunciado da prova
foi transportado pelas autoridades de segurança como acontece em todas
as escolas.
O diagnóstico de Alexandre chegara a 31 de Dezembro
de 2013: linfoma de Burkitt, um cancro agressivo, cuja extensão pode
duplicar em apenas 24 horas. "Sentia uma dor de barriga forte e, como
não passava, fui ao hospital", conta o adolescente, que três dias depois
da prova de Física e Química, fez a de Geometria Descritiva. "A minha
irmã explicou-me a matéria e dessa vez tive 17,5 valores", constata
Alexandre
Mesmo doente conseguiu entrar na licenciatura em Engenharia Informática.
Está, neste momento, na época de avaliações do 2º semestre – e o
linfoma parece ter ficado para trás. "Levo uma vida completamente
normal", afirma o agora voluntário no IPO.
Em
10 meses de internamento, nos quais fez sete ciclos de quimioterapia e
um autotransplante (usando as próprias células), passou por períodos
longos de isolamento. "A escola foi fundamental nesse processo de
recuperação, tal como a família e os amigos", considera o pai, Henrique
Curopos. "Havia dias em que não era possível, mas quando o Alexandre
estava bem-disposto estudava e tinha aulas individuais por Skype."
Maria
de Jesus Moura, directora da unidade de Psicologia do IPO de Lisboa,
diz que a escola é determinante. "Mantém os projectos de vida das
crianças. A dada altura tudo se concentra na doença: há sintomas,
tratamentos, amigos e familiares que fazem visitas e falam sobre o tema.
A escola é uma maneira de quebrar este contacto constante. Tem uma
função adaptativa e, ao mesmo tempo, de protecção."
Há escola no hospital
Por
se tratar de uma doença que altera profundamente o quotidiano das
crianças, que as debilita e deixa sequelas físicas (perda temporária de
cabelo, de sobrancelhas, inchaço, etc.), os IPOs de Lisboa e do Porto
criaram escolas nos seus edifícios – em cada uma há três professores.
"Algumas
crianças mantêm a escolaridade de forma regular com a instituição de
origem", explica a docente Dina Ribeiro, do IPO de Lisboa. "Outros
necessitam de uma intervenção mais complexa – nestes casos temos um
papel mais regular e incisivo", acrescenta.
Em Lisboa e no Porto, alunos de várias idades reúnem-se no mesmo espaço
para tirar dúvidas, resolver exercícios ou desenvolver actividades
didácticas. Às vezes fazem testes. "A escola de origem envia-nos o
enunciado e eles resolvem aqui", diz Dina Ribeiro.
Cada aluno
tem um plano curricular adaptado ao tratamento e ao ano escolar. "É
preciso encontrar o momento e a forma de apoiar cada um. Não temos um
programa rígido. Muitas vezes estão connosco e são chamados para um
tratamento ou consulta", explica a mesma professora. António Teixeira,
do IPO do Porto, afirma: "Não temos um programa obrigatório. O nosso
papel ultrapassa em muito o do professor tradicional."
A lei
portuguesa prevê que as crianças com cancro continuem a ter um
acompanhamento académico que as mantenha intelectualmente activas –
mesmo em tratamento. Em Janeiro, o ministro da Educação, Tiago Brandão
Rodrigues, disse que o Governo estava a trabalhar num diploma para
regulamentar o acesso destas crianças à escola. O gabinete do ministro
disse à SÁBADO não ter ainda novidades sobre o tema.
Em alguns
casos o apoio é feito à distância. Foi o que aconteceu a Teresa Madeira,
de 8 anos, que deixou de ir à escola em Outubro, quando lhe detectaram
uma leucemia. "Entre tratamentos e idas ao IPO, assiste às aulas por
Skype, faz perguntas à professora e interage com os colegas. Se
projectarem alguma coisa no quadro, aparece também no ecrã da Teresa",
conta a mãe, Florbela Pires.
"Habitualmente começam às 9h e
normalmente deixo-a sozinha nesse período – seria assim em
circunstâncias normais. Só intervenho se houver uma falha tecnológica",
refere a advogada.
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As aulas fazem-na feliz. "Ficou triste com a perspectiva de não
acompanhar os colegas. Por isso é importante para ela passar de ano",
conta Florbela Pires, sublinhando que a filha não se incomoda com a
falta de cabelo. "Foi outra menina do IPO que disse à Teresa que ela ia
ficar careca. O pai mostrou-lhe fotos de cantoras e actrizes que também
faziam quimioterapia e ela reagiu bem." Neste momento, está na última
fase do tratamento (manutenção) e, pouco antes de as aulas terminarem,
voltou aos Salesianos do Estoril para visitar os amigos. "Estavam todos
numa grande excitação. Ela pediu -lhes para fazerem uma fila: deu
abracinhos a todos. Ofereceram-lhe um livro e a directora chamou-a ao
palco para lhe dar as boas-vindas", recorda Florbela.
Como vai ser o futuro?
Como vai ser o futuro?
A maioria dos tratamentos contra o cancro infantil não tem hoje um impacto cognitivo nos doentes, garante Filomena Pereira (na foto),
directora do serviço de pediatria do IPO de Lisboa. "Os pacientes com
hipóteses de apresentarem défices cognitivos são os que fazem
radioterapia ao sistema nervoso central, mas esta opção terapêutica
abrange cada vez menos crianças", refere a oncologista.
O que é comum a quase todos as crianças com cancro é a fadiga. "Muitas
continuam a queixar-se do cansaço, mesmo depois do tratamento. É claro
que isso pode prejudicar os resultados escolares", diz a psicóloga Maria
de Jesus Moura.
Não foi o caso de Frederica Peixoto (na foto),
de 13 anos. Apesar da leucemia e de dois episódios em que esteve à beira
da morte, continua a ser a melhor da turma, mesmo a fazer
quimioterapia. "Era aluna de quadro de mérito e continua assim", diz a
mãe, Susana do Canto.
Uma das grandes preocupações dela quando soube que estava doente foram os estudos. "Tinha medo de chumbar", acrescenta.
No
último ano lectivo, Susana do Canto deslocou-se todas as semanas à
escola da filha, na Portela, concelho de Loures. "Ia buscar ou entregar
trabalhos ou fichas", conta. Frederica transitou para o 9º ano com o
apoio dos professores do IPO de Lisboa e com a ajuda de aulas
individuais por Skype. "Rende mais assim do que com a turma", diz a
adolescente, que chegou ao fim do ano lectivo com quatros e cincos. "A
melhor nota foi num teste de Ciências: 100%", conta, assumindo as
saudades da escola. "Ainda não sei se volto em Setembro."
Fazer desenhos e pedir ajuda
Ao
contrário de Frederica, José Ramos, de 15 anos, regressou à escola
durante o tratamento. Depois de uma cirurgia delicada em que lhe
removeram um tumor cerebral maligno, a mãe e as professoras do IPO
conseguiram convencê-lo a voltar em Setembro de 2015. A véspera, porém,
foi passada a chorar. José tinha medo de enfrentar os colegas –
caminhava com dificuldade e estava sem cabelo. "Deixou de mover o lado
esquerdo, depois da operação. Cai muitas vezes e está muito magro",
explica a mãe, Mónica Ramos. "Às vezes dizia-me que não tinha amigos –
tinham-se afastado." Apesar disso, a nova turma na escola de Marinhais,
Salvaterra de Magos, surpreendeu-o. "O director de turma apresentou-o
como um aluno normal. Isso foi importante."
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A pensar
precisamente no regresso, o Núcleo Regional do Norte da Liga Portuguesa
Contra o Cancro (LPCC) desenvolve acções de formação em escolas. "Os
professores e os auxiliares não sabem como receber o aluno, como lidar
emocionalmente com ele. Têm muitas dúvidas: devem protegê-los de
perguntas? Podem manter o nível de exigência?", explica Patrícia Gomes
(na foto), psicóloga responsável pelo projecto, sugerindo que devem agir
naturalmente. Paralelamente, tentam sensibilizar as outras crianças da
turma. "É importante explicar-lhes o que é o cancro – em casos de
leucemia, por exemplo, deve desenhar-se o corpo humano num papel de
cenário para eles perceberam que a doença está pelo organismo todo",
aconselha. E acrescenta: "Às vezes aparecem com soluções engraçadas:
‘Então e se lhes tirássemos o sangue e puséssemos um novo?"
A acção de três semanas, implementada até agora em três escolas do
distrito do Porto, também pretende esclarecer os pais dos alunos
saudáveis. "Por mais estranho que pareça, há quem acredite que o cancro é
contagioso", nota a especialista.
Enquanto o processo decorre,
prepara-se o doente. "Dizemos-lhe que tem os amigos à espera,
apresentamo-lo como um super-herói. E no dia do regresso, pomos-lhe uma
capa e tiramos fotos", diz Patrícia Gomes. Há que ter sempre em conta a
idade da criança. "Nos mais novos, a preocupação é o afastamento dos
cuidadores e dos amigos. Os mais velhos centram-se na ideia de dor e
sofrimento. Alguns intelectualizam a doença e sabem exactamente o que
têm. Interpretam análises e exames."
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João Rocha, de 14 anos,
domina bem os termos médicos. Ainda não voltou ao colégio, em Vila Nova
de Cerveira (frequenta o 9º ano), mas está optimista quanto à
recuperação. A 18 de Setembro de 2015 detectaram-lhe um linfoma, que se
manifestou com dores intensas no ombro. "A médica disse-me que a minha
cura tinha duas vertentes: uma parte competia-lhe a ela e à medicina; a
outra cabia-me a mim e ao meu ânimo. Respondi-lhe logo: ‘Dra., trate da
sua parte porque a minha está assegurada.’"
* Histórias de arrepiar e encantar.
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