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O poder de uma boa asneira
Este artigo pode conter linguagem suscetível de ferir a sensibilidade de alguns leitores.
Por que diabo cai tão mal dizer merda num jantar de avós
quando, em tempos, mandar alguém para o diabo era a pior ofensa de
todas? E como se exprime uma emoção verdadeiramente forte a não ser com
asneiras? São intensas, proibidas, poderosas. Maiores do que quaisquer
palavras, por isso lhes chamam palavrões. Está avisado, leitor!
Poucas palavras traduzem tão bem um sentimento de dor, raiva e até
alegria do que um palavrão solto na altura certa. O cônjuge rompe
connosco, ai queria tanto que resultasse mas não dá? «Querias porra
nenhuma, vai-te foder!» Entramos na cozinha ensonados para fazer café e
esbarramos no armário? «Merda, quem é que deixou a porta aberta?» Dizer
asneiras é uma coisa desgraçada: levamos a infância sem poder
pronunciá-las e o resto da vida fascinados pelo seu poder. Um estudo
publicado em dezembro de 2015 na Language Sciences (University
of Southern Denmark) diz mesmo que quem sabe muitas asneiras tem o resto
do vocabulário mais desenvolvido do que as pessoas pouco fluentes em
obscenidades. Não há medo do ridículo que resista a um bom palavrão.
Ainda assim, se tiver menos de 18 anos ou for leitor para se ofender, é
melhor não ler este artigo.
«As asneiras são especiais. Têm uma ligação mais profunda com as
nossas emoções do que quaisquer outras palavras», garante-nos Melissa
Mohr, especialista inglesa em literatura medieval e renascentista e
autora de Holy Sh*t: A Brief History of Swearing (Grande M*rda: Uma Breve História do Asneiredo).
«As pessoas usam-nas para insultar – são particularmente boas por
carregarem tanto conteúdo emocional –, mas também para aliviar ou
exprimir emoções extremas de felicidade, tristeza, surpresa.» Ao
contrário do que seria de prever, contribuem para fortalecer a coesão
entre membros de um grupo: vários estudos referem um aumento da moral no
trabalho entre funcionários que se juntam para praguejar contra a
gerência. «Podem ainda ser termos de afeição: os homens britânicos
chamam-se muitas vezes cunt (cona) uns aos outros, da mesma forma que os afro-americanos se tratam por nigger (preto) entre si.»
.
E o que é, afinal, uma asneira? «É vocabulário insultuoso que integra
a linguagem do dia-a-dia de quase toda a gente», define Filipa Jardim
Silva, psicóloga clínica da Oficina de Psicologia. O sentido surge
sempre num contexto cultural e depende dos mecanismos de conservação da
língua: «Os palavrões flutuam de época para época e de cultura para
cultura. Uma expressão pode ter um significado forte em dado lugar ou
momento histórico e perdê-lo noutros.» Melissa Mohr concorda,
acrescentando que o inverso também ocorre quando palavras comuns
adquirem o estatuto de palavrão. «Na Idade Média, profundamente
religiosa, não havia nada pior do que jurar pelas chagas de Cristo ou
mandar alguém para o diabo.» Hoje são os insultos raciais e homofóbicos
os mais ofensivos, por estarmos mais empáticos com os outros, ao passo
que as asneiras sexuais são o legado de um tempo em que era esta a maior
preocupação social.
«Apesar de serem tabu máximo na época vitoriana, foram os romanos que
nos deram a atual medida para o obsceno, baseada nos seus próprios
palavrões em torno do corpo, partes íntimas e atos sexuais. Mais ainda
aos portugueses, já que muitas das vossas asneiras provêm diretamente do
latim.» Caralho, por exemplo, deriva de caraculu e significa
pequena estaca. «O termo passou a ser usado para designar o membro do
touro na antiguidade», explica o jornalista Luiz Costa Junior no livro Com a Língua de Fora – A Obscenidade por Trás de Palavras Insuspeitas.
Do membro do touro para o do homem foi um passo. Outra explicação (não
consensual) refere o caralho como a cesta no alto dos mastros das
caravelas, onde os marinheiros avistavam terra ou eram postos de
castigo, daí a expressão ir para o caralho. E que locução transmite
melhor a grandeza de algo do que “para caralho”? «Estou fulo para
caralho. Gosto de ti para caralho. Esse gajo é chato como o caralho!»
Tanta emotividade ligada às asneiras
deve-se
sobretudo, segundo Filipa Jardim Silva, ao facto de habitarem no sistema
límbico, «os porões da cabeça», enquanto a linguagem comum e o
pensamento consciente ficam a cargo do neocórtex, a parte sofisticada da
massa cinzenta. «É essa a região que controla as nossas emoções básicas
e regula os impulsos, a zona mais primitiva em nós, e também por isso
os palavrões estão tão associados a funções orgânicas, sexuais e
reprodutoras», diz.
O senso-comum sugere serem mais comuns entre o sexo
masculino, no Norte do país e em adolescentes, mas nenhum estudo
sociolinguístico sobre o assunto (dos poucos que temos) sustenta esta
ideia. Pelo contrário, ressalva João Veloso, coordenador do Centro de
Linguística da Universidade do Porto. A realidade é bem mais
democrática.
«Os palavrões são transversais a todos os extratos económicos,
classes sociais e gerações. Acontece que as pessoas com um acesso mais
intensivo à escolaridade ou às normas da boa educação são treinadas para
refrear o seu uso, pelo que dispõem de uma noção consciente das
circunstâncias em que é aceitável usarem-nos», explica o linguista e
professor do departamento de Estudos Portugueses e Românicos da
Faculdade de Letras do Porto. As diferenças entre
regiões/países/culturas resultam de a carga simbólica atribuída a cada
palavra variar muito: o que é pejorativo num lado pode não sê-lo noutro.
«A partir do momento em que o império romano foi cristianizado, a
tradição dos banhos públicos desapareceu e o tabu social perante a nudez
gerou um tabu linguístico face a certas partes do corpo, ainda hoje
vivo nos países de tradição católica.» De resto, não há nenhuma cultura
que não tenha o seu reservatório de palavrões. «Qualquer dicionário bem
feito e que não tenha sido censurado os traz. Todos temos conhecimento
desse reportório lexical. O que muda é a utilização mais criativa ou
mais privada que fazemos dele.»
Do tal estudo de vocabulário publicado na Language Sciences
fez parte o norte-americano Timothy Jay, professor de psicologia do
Massachusetts College of Liberal Arts e perito em linguagem tabu. Jay
passou as últimas três décadas a anotar palavrões que ouvia em lugares
públicos, constatando serem palavras que não é suposto dizermos e, por
isso, tão poderosas. Concluiu também que a aprendizagem começa cedo,
logo aos 2 anos, e aos 11 ou 12 as crianças já conhecem tantas asneiras
como os adultos. «Não merece grande preocupação, até porque os mais
novos não sabem o significado dos termos, apenas que os pais ficam
chateados por ouvirem dizê-los», tranquiliza. E não havendo nada que se
possa fazer para evitar, o melhor é ensinar-lhes como e onde é aceitável
usar asneiras, para garantir que não vão chamar nomes à professora ou
passar por malcriados. «Na verdade, elas substituem efetivamente
expressões infantis de fúria, como morder e berrar.»
Mohr recorda ainda um estudo de Richard Stephens, professor na
Universidade de Keele, Reino Unido, e vencedor de um IgNobel em 2010 por
descobrir que dizer palavrões alivia a dor física, sobretudo em quem os
diz pouco. Outro estudo de 2014, realizado em Itália, concluiu que os
políticos eram mais bem vistos pela opinião pública quando asneiravam,
uma vez que pareciam emocionalmente mais envolvidos no que diziam e,
portanto, mais confiáveis. E não, o mundo não seria um lugar melhor se
as pessoas parassem de dizer asneiras. «Livrarmo-nos das palavras com as
quais exprimimos ódio não acaba com o ódio em si, a agressão ou o
conflito», observa. Por outro lado, perderíamos a chave para trabalhar
estas emoções e uma válvula de escape fundamental, dado que dizer
asneiras é o mais próximo que temos da violência sem que haja contacto
físico. «Elas são catárticas. Aliviam como nenhuma palavra comum
consegue.» Há coisas fodidas.
A RAIZ DAS ASNEIRAS
Levaram tempo a ser “dicionarizadas”, por serem consideradas menores ou desprezíveis, mas já integram o dicionário online Priberam ou as mais recentes edições do Dicionário Editora da Língua Portuguesa (Porto Editora).
Merda. Em latim merda, não significa só
excremento como raiva, repulsa, falta de qualidade. O nojo associado à
palavra prende-se com o nosso desejo de não tocar ou comer, sublinha a
médica inglesa Valerie Curtis no artigo Is Hygiene in Our Genes? (Está a Higiene nos Nossos Genes?).
Cu. Asneira mais sintética não há, apesar de se ter
desdobrado num enfático «Vai levar no cu», capaz de evacuar a nossa
irritação. É a parte da agulha onde se enfia a linha, com a ranhura, daí
o ainda mais específico «Vai apanhar no olho do cu».
Puta. Vem do latim putta e significa
meretriz, apesar do original querer dizer menina e ser uma divindade
agrícola romana protetora da poda. As sacerdotisas fariam rituais de
fertilidade que podem explicar esta ligação ao sexo.
Foder. Do latim futuĕre, ter relações
sexuais, ganhou a conotação negativa de deixar/ficar em mau estado por
associação a violações e doenças. Também usado como foda-se, dasse,
fodeu e fodeu de vez, a forma mais definitiva.
Boceta. De buxis. Consta que as romanas
guardavam os valores em pequenas caixas de madeira de buxo redondas ou
ovais a que chamavam bocetas. Uma metáfora evidente para as partes
genitais femininas, o tesouro da mulher.
Porra. A semelhança com alho-porro (allium porrum)
não é coincidência, já que o vegetal é fálico e segrega um líquido como
o sémen (ou esporra, ou porra). Outra teoria é a de que seria uma arma
de guerra medieval, também conotada com pénis e esperma.
Cona. Em latim cunnus. Terá tido origem no
termo latino para rede e refere-se ao órgão sexual feminino, dando ainda
origem às variações conanas, coninhas, conaça e enconar (qual delas a
mais feia?).
FAMOSOS ADEPTOS DE PALAVRÕES
Jorge Amado. O escritor brasileiro adorava expressões
politicamente incorretas como papar (ter relações), fechar a cancela
(aposentar-se sexualmente), levantar cacete (ter uma ereção) ou dar a
maricotinha (sinónimo de tomar no cu, esclarece o próprio).
William Shakespeare. Da próxima vez que ler Romeu e Julieta,
saiba que o autor foi tremendamente insultuoso ao escrever «Que a peste
invada as casas de ambos», numa altura em que surtos de peste negra
continuavam a ameaçar a Europa no século XVI.
Jennifer Lawrence. A atriz de Jogos da Fome
é conhecida por ser asneirenta. Desafiada pelo apresentador Conan
O’Brien a dizer quantas pudesse em 30 segundos, a 100 dólares cada uma,
somou quase cinco mil euros que reverteram para beneficência.
Pink. A cantora assume dizer os seus palavrões de
vez em quando. Tal como o marido, a estrela de motocrosse Carey Hart,
principal responsável pelo linguajar lá de casa. E a filha de 4 anos,
Willow. «Ela di-las baixinho quando julga que ninguém está a ouvir.»
Miley Cyrus. Tem sido apelidada de “rainha dos
palavrões” por muitos fãs aborrecidos com a faceta imoderada da jovem
cantora. Além de insinuações sexuais e gestos lascivos, solta a língua
em todos os discursos que faz, no palco e fora dele.
Madonna. Em março de 1994, usou a palavra foder e
seus derivados 14 vezes no programa de David Letterman, fazendo deste
episódio o mais censurado de sempre na história dos talk shows. A artista sabe inclusivamente asneiras em português.
* Bom p'ra c......!
.
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