ESTA SEMANA NA
"VISÃO"
"VISÃO"
Os ficheiros secretos da medicina legal
Análises genéticas, testes de paternidade, deteção de droga e álcool, pareceres em casos de violência doméstica ou abuso sexual, e, claro, autópsias. No Instituto de Medicina Legal resolvem-se crimes, estabelecem--se indemnizações, encontram-se vítimas e culpados. Bem-vindo aos seus bastidores
Ver com os próprios olhos
Não há como
negar. Apesar de representar apenas 10 por cento do trabalho, as
autópsias são o aspeto mais visível da atividade no Instituto Nacional
de Medicina Legal, com sede em Coimbra. Acontecem sempre que há um
cadáver e uma ordem do Ministério Público.
O 'Caso da Chaminé'
Uma
mulher aparece morta no Alentejo, estrangulada. A casa onde vivia está
remexida, como se tivesse havido um roubo. A Polícia Judiciária (PJ)
desconfia: o assalto parece ensaiado. A suspeita principal recai sobre o
marido, chamemos-lhe Joaquim, emigrante em França. Joaquim passa a ser
seguido. Tem uma relação extraconjugal, um filho desta mesma e um
diferendo por causa de uma casa. É posto sob escuta e a polícia
desconfia de um carregamento que ele, vendedor de chaminés em cimento,
envia para Portugal, num camião TIR. Quando a carga chega ao destino, a
polícia manda desmanchar a chaminé e, lá dentro, entre os blocos de
cimento, está um corpo.
O primeiro desafio foi identificar o
corpo encarcerado no cimento. Primeiro saltaram à vista as tatuagens,
que são sempre uma boa pista. A seguir, a autópsia, onde se procura todo
o tipo de informação que possa dar pistas acerca do homicídio.
Percebeu-se que o homem tinha morrido com um tiro na nuca. A análise ao
conteúdo do estômago permitiu perceber que tinha comido moelas antes de
morrer. Esta informação ajudou a polícia a associar o corpo a um
visitante, estrangeiro, que tinha passado pela aldeia alentejana, onde
tinha sido encontrado o corpo da senhora. O homem ia disfarçado, com
peruca e bigode, mas o menu pedido na tasca local coincidia com o
descrito na autópsia.
A palavra autópsia tem origem no grego e
significa ver com os próprios olhos. “Sentimos, cheiramos, palpamos,
medimos, com detalhe e rigor. Temos de estar preparados para responder a
qualquer tipo de pergunta que possa vir da investigação”, explica João
Pinheiro, médico, especialista em Medicina Legal, e vice-presidente do
Instituto Nacional de Medicina Legal (INML).
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Além deste exame, a
olho nu, foi preciso ainda fazer um estudo genético ao morto para
perceber se havia uma relação entre o mesmo e o carro da mulher
assassinada, encontrado ao abandono em Madrid.
E havia. O ADN do
homem, encontrado dentro da chaminé, foi detetado no interior do
veículo. Estavam descobertas todas as peças do puzzle: Joaquim contratou
um assassino profissional para matar a mulher. E a seguir, depois do
trabalho feito, eliminou-o, com um tiro na nuca.
Este caso, que
nas aulas João Pinheiro apresenta como 'o caso da chaminé', é exemplar, o
que se pode chamar de um 'caso de estudo': envolve várias polícias – de
França, Portugal e Espanha –, diferentes tipos de análises, a anatomia
patológica e os testes genéticos, e um crime intrincado, mas que, mesmo
assim, resultou na condenação do assassino.
Sentença: o marido foi considerado culpado, condenado a 25 anos de prisão.
A arma do crime
Uma mulher, grávida de sete
meses, foi encontrada morta em casa, com vários golpes em todo o corpo,
em particular no abdómen. Apesar da tentativa da equipa do INEM, que
tentou fazer o parto, não é possível salvar o bebé. O corpo da mulher
segue para o INML. Um dia depois, o ex-companheiro, que também tinha
ferido os pais da vítima e era o principal suspeito, apareceu enforcado,
a 800 metros do local do crime. Ao seu lado, uma catana e uma faca de
cozinha.
Neste caso, era importante perceber qual a causa de
morte e determinar se a arma do crime coincidia com a faca e a catana
encontradas ao lado do corpo do ex-companheiro. Uma autópsia nunca é um
ato isolado. Há sempre dois especialistas na sala, que lembra mais um
talho do que um bloco cirúrgico. Até o cheiro se assemelha. A parede
está forrada a azulejos e o chão é feito de uma grade, por onde escorrem
os líquidos corporais. O primeiro passo desta 'valsa' é medir,
descrever, desde a cor do cabelo aos olhos, por exemplo, e os sinais de
morte, como a rigidez. Depois vem a primeira incisão, do pescoço à
púbis, cortam-se as costelas, retiram-se os órgãos, colhe-se o sangue,
analisa-se o conteúdo do estômago. Colhem-se amostras, que depois serão
cortadas em lâminas fininhas, do fígado, rim, coração. A seguir, abre-se
o crânio (“não gostamos de olhar para a cara dos mortos”, confessa João
Pinheiro), retira-se o cérebro, que também será cortado em lâminas, e
preenche-se o espaço com algodão, para que a cabeça mantenha a firmeza.
“A maior parte das causas de morte estão na cabeça”, nota o patologista.
No final, depois de tudo cosido, vem o embelezamento: lavar, limpar,
cortar a barba, as unhas.
“Mesmo em histórias que parecem estar
resolvidas, tem de se fazer autópsia”, reforça João Pinheiro. Neste
caso, em que o assassino se suicidou, foi possível afirmar, sem sombra
de dúvida, que “as lesões traumáticas do pescoço, abdómen e membro
superior esquerdo causaram a morte”, lê-se no relatório. Mas em cinco a
sete por cento das situações o exame pode ser inconclusivo. “Não existe
100% de sucesso”, sublinha o médico. Os patologistas notaram ainda que o
predomínio das lesões no abdómen sugerem uma deliberada intenção de
ferir o feto. Também ficou claro o tipo de arma envolvida no crime. Caso
encerrado.
Antropologia forense
O que dizem os ossos
Por
vezes, quando o corpo é encontrado, já só sobram os ossos e aí entra em
ação Gonçalo Carnim, o especialista da delegação de Coimbra do INML,
que tem colaborado, por exemplo, na identificação das vítimas do
franquismo, em Espanha
Queda ou empurrão
No sopé de uma zona
escarpada, descobre-se um esqueleto. Considerando a zona em que foram
encontrados os restos esqueléticos e consultadas as listas de
desaparecidos a P.J., julga tratar-se de Maria. A vítima era casada com
Hélio e a P.J. suspeita que ele a terá matado. Este parece ser mais um
caso de violência doméstica mas o homem afirma que não teve intenção de
matar a mulher, que fez tudo para a salvar e que ocultou o seu cadáver
por ter medo que lhe atribuíssem a culpa do sucedido.
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Este é um
caso para Gonçalo Carnim, antropólogo forense, que procura as pistas que
os ossos escondem. “É necessário realizar a análise tafonómica, isto é,
perceber o que aconteceu àquele corpo desde o momento em que é cadáver
até ao momento em que é encontrado: quanto tempo terá decorrido desde a
morte, se o cadáver sofreu ação de animais necrófagos, etc.”, explica. É
preciso avaliar se algumas das fraturas observadas resultam da ação do
agressor sobre o corpo da vítima ou da queda do corpo pela encosta da
ravina. De seguida, “a análise antropológica teve que determinar se as
lesões esqueléticas observadas estão de acordo com a história contada
pelo marido, que alega, por exemplo, que a vítima terá caído de costas,
desequilibrando-se, enquanto o agredia. Só que são observadas fraturas
ósseas na região da face que, além de não serem compatíveis com uma
queda de costas, sugerem uma agressão direta e muito violenta. A
história do marido era falsa.
Testes de ADN
Quase 100% de certeza
O
estudo dos genes deu um salto de gigante nos últimos anos, sendo
decisivo na identificação de criminosos. Está sob alçada do INML a base
de dados de perfis genéticos de criminosos, para a qual começaram a ser
recolhidos elementos em fevereiro de 2010.
A falsa vítima
Um Fiat Uno é encontrado,
abandonado, depois de ter estado envolvido num acidente. Quando se
identifica o dono do veículo, este alega que tinha sido vítima de um
roubo e que o carro já não estava em sua posse quando bateu. A Polícia
Judiciária não acreditou nesta versão e pediu ajuda à Medicina Legal,
enviando para análise dois pedaços de tecido do airbag.
O
material chega num saco da polícia. Chamam-lhe police evidence bag e
está fechado com fita gomada e agrafos. Lá dentro, as amostras do airbag
do condutor e do passageiro. Num envelope, vai uma escova com colheita
de saliva do dono do Fiat Uno. Do airbag extrai-se o ADN, recorrendo a
uma técnica muito semelhante à que se usa nos laboratórios de
investigação – o PCR – que funciona como uma espécie de amplificação dos
genes, para posterior descodificação. Pela comparação do material
genético encontrado no airbag e recolhido na zaragatoa à saliva do dono
do carro, percebeu-se que se tratava da mesma pessoa. Conclusão: o dono
do carro ainda ia ao volante quando o airbag disparou, ou seja, fora ele
o culpado pelo acidente.
Em vinte anos, Maria João Porto,
responsável pela área de genética no Instituto de Medicina Legal de
Coimbra, assistiu a uma enorme evolução. No seu laboratório, metade do
trabalho está relacionado com os testes de paternidade. Também acontece
ser requisitado para identificar restos de cadáveres, amostras de
esperma, num contexto de crime sexual, ou ainda na identificação de
suspeitos noutro tipo de crimes. Quando começou, os testes baseavam-se
na identificação do grupo sanguíneo ou das proteínas encontradas no
plasma. Os resultados dos testes de paternidade traduziam-se em 'pouco
provável', 'algo provável', e por aí fora. “A escala acabava em 99,73%
de probabilidade. Hoje, conseguimos chegar a 99, 999999% de certeza”,
compara Maria João Porto. Ainda assim, a decisão, de atribuir a
paternidade ou a autoria de um crime, continua a ser do juiz. “A prova
do ADN é muito poderosa, mas não é a única”, sublinha a especialista.
Contudo, a especialista reconhece que “no tribunal, a perícia é cada vez
mais importante”.
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É também a partir dos testes feitos no
laboratório de genética que se tem vindo a construir, desde 2010, a base
de dados de perfis de criminosos. Além destes, também se faz
identificação do genoma de cadáveres, para cruzar com o de pessoas
desaparecidas, de amostras de suspeitos envolvidos em crimes ou ainda
dos profissionais dos laboratórios de genética do Instituto. Todos estes
dados ficam armazenados, sob a guarda do Instituto de Medicina Legal.
No entanto, o processo está dependente de uma decisão judicial, o que
torna o processo moroso e complicado.
O presidente do INML, o
juiz desembargador Francisco Brízida Martins, espera que a alteração
legislativa que está prevista para breve venha a simplificar a aquisição
destes dados, permitindo incluir mais perfis ao diminuir os
pressupostos e requisitos. “O legislador teve uma atitude
cautelosa,devido à relutância inicial à constituição desta base de
dados”, justifica. No final do ano passado havia já mais de sete mil
registos. “Tem vindo a crescer, mas pretendia-se que tivesse mais
elementos. Quanto maior, mais possibilidades temos de que venha a ser
útil [na resolução de crimes]”, afirma o presidente.
“Continua a
haver casos em que não é possível chegar a uma conclusão (o nosso
trabalho não é como no CSI), mas são cada vez menos. A evolução das
técnicas tem-nos permitido identificar amostras com menos quantidade de
material”, diz Maria João Porto. O ideal é que a amostra seja uma
zaragatoa da boca, carregada de ADN. Mas há casos em que tudo o que
sobra é uma amostra de osso ou um cabelo. Quando há um transplante de
medula óssea, o cabelo acaba mesmo por ser a fonte mais segura já que
preserva o ADN original, enquanto o sangue, por exemplo, expressa os
genes do dador de medula, o que deturpa os resultados.
Análises As perícias com material genético têm cada vez menos margem de erro e um maior peso como prova em tribunal
Quanto vale?
Em Coimbra, além dos
laboratórios, também há salas de consulta. São aqui feitas as perícias
em processos de maus tratos, violência conjugal, abuso de menores,
violações. Também são avaliados os graus de incapacidade em casos de
acidente, para posterior cálculo de indemnização
Violação
Uma mulher de 38 anos, desempregada,
refere ter sido violada pelo ex-marido. O filho, de onze anos, que
assistiu a parte da cena, até o pai se ter fechado no quarto com a mãe,
chamou a GNR que ainda conseguiu deter o homem. A mulher dirigiu-se ao
Instituto, sem tomar banho e levando a roupa interior que usava na
altura. O casal está em processo de divórcio, com uma acusação de
violência doméstica, por parte da mulher.
Na consulta, a senhora
refere ser vítima de agressões sexuais e maus tratos há vinte anos, sem
nunca ter recorrido a assistência médica. Durante o exame, a vítima
mostra-se cooperante. Tem equimoses na cara e no braço. Na cadeira
ginecológica, a região ano-genital é examinada ao pormenor, com
descrição das dimensão das lesões, a coloração. Foram detetados
espermatozoides nas cuecas, na vulva e na coxa. Estas amostras foram
comparadas, no laboratório, para identificação do alegado violador.
Conclusão: as lesões da região genital são compatíveis com a descrição
da agressão feita pela vítima.
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Na área clínica, onde trabalham
psicólogos, psiquiatras ou ginecologistas, por exemplo, trata-se dos
vivos. Nem todos são funcionários dos Instituto, foram antes contratados
para questões específicas. Dão-se pareceres sobre questões relacionadas
com o direito do trabalho, penal ou cível.
São os peritos do
Instituto que estabelecem os graus de incapacidade em caso de acidentes
de trabalho, por exemplo, que depois o tribunal converte em dinheiro.
Uma avaliação feita caso a caso. Por exemplo, para uma bailarina, perder
parte da mobilidade num braço, terá mais impacto do que para um
contabilista. E é este o papel dos peritos, avaliar o dano, tendo em
conta o estilo de vida da pessoa em questão.
Nos últimos anos, tem aumentado significativamente o recurso a pareceres em casos de determinação do poder parental.
* Excelente descrição dum mundo tão longe e tão perto ao mesmo tempo.
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