A batalha do nosso tempo
É impossível saber, à hora a que escrevo, quem ganhou as eleições
presidenciais na Áustria. Os dois candidatos rivais estão tão empatados
que vai ser necessário esperar até amanhã pela contagem dos votos por
correspondência. Necessário — e importante. [Nesta segunda-feira,
soube-se que venceu o candidato ecologista].
Muita
gente ouviu falar destas eleições porque o candidato da
extrema-direita, Norbert Hofer, um político anti-imigração e
anti-refugiados que faz gala de transportar consigo uma pistola Glock,
ganhou a primeira volta das eleições. Mas isso foi só metade da
história. A outra metade estava relacionada com a total implosão dos
partidos clássicos do centro, tanto democratas-cristãos como
sociais-democratas.
Houve quem desvalorizasse esta eleição porque o
cargo de Presidente da República na Áustria tem uma dimensão sobretudo
simbólica. Creio que essa desvalorização é um erro. É precisamente pela
sua dimensão simbólica que esta eleição deve merecer toda a atenção:
saber se há um país em que mais de metade dos eleitores preferem ter por
representante da nação um semifascista é decisivo, não só para a
Áustria, mas para toda a Europa. E também nessa desvalorização se sentiu
a implosão dos partidos tradicionais: não só falharam em ter candidatos
que passassem à segunda volta como evitaram ter uma posição clara de
oposição ao candidato da extrema-direita, o que não deixa de ser
sintomático de uma erosão de valores democráticos análoga ao dos anos
30, quando as democracias europeias se escusaram a apoiar a República
espanhola contra o franquismo.
Pouco se falou, pois, do outro
candidato que passou à segunda volta, Alexander Van der Bellen, um
político dos Verdes austríacos, pró-imigração e ele próprio filho de
refugiados russos (o apelido é holandês porque os seus antepassados mais
remotos emigraram da Holanda para a Rússia).
A grande batalha
política nestes tempos de crise dos direitos humanos, globalização
assimétrica e desorientação europeia já não é apenas entre esquerda e
direita. Ela conta com pelo menos três outras dimensões.
Em
primeiro lugar, ela é uma batalha entre autoritários e libertários. Nos
EUA, os cientistas políticos têm encontrado uma maior correlação entre a
preferência pelo autoritarismo e o voto em Trump do que entre quaisquer
outros fatores descritivos do eleitorado como a classe, a idade ou o
rendimento.
Em segundo lugar, trata-se de uma batalha entre
comunitarismo e cosmopolitismo, ou seja, entre quem acha que a política
deve servir apenas para proteger “os nossos” e quem entende que a
política deve sobretudo servir para concretizar a universalidade dos
direitos humanos. Van der Bellen em nenhum momento aceitou recuar nas
suas posições de apoio aos refugiados e de construção de uma solução
europeia para a crise presente, por muito impopulares que essas posições
sejam hoje. Merece parabéns pela coerência.
Em terceiro lugar,
esta batalha opõe quem leva a sério os limites do planeta e o respeito
pela natureza e quem acha que essa preocupação não passa de conversa
fiada.
É por isso relevante, e até decisivo, que pela primeira vez
um candidato de esquerda ecológica, libertária e cosmopolita possa
ganhar eleições presidenciais na Europa. Fico a torcer por ele.
IN "PÚBLICO"
23/05/16
NR: Ganhou VAN DER BELLEN, uf, uf!
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