Vais à farmácia
e compras lágrimas
Vais à farmácia e compras lágrimas.
Estás a gozar.
Chegas lá e pedes lágrimas, os teus olhos estão muito secos, isso faz-te mal.
Tenho em casa soro fisiológico, é o que costumo usar.
Compra lágrimas, o soro só seca ainda mais.
Estás a gozar.
As lágrimas têm mais do que água, têm gordura, têm outras coisas.
Tem lágrimas?
Que marca quer?
Não sabia que se podia comprar lágrimas. Na fotografia do Man Ray,
aquelas cinco lágrimas perfeitas parece que vão ficar ali, redondas e
imóveis para sempre, que não vão nunca escorregar pelo rosto como
acontece às pessoas que não têm aquelas feições perfeitas. Lágrimas que
estão ali para brilhar, fazem parte daquele olhar indecifrável. Está
triste? Está enfadada? Está a sonhar acordada? Está apenas a posar para a
fotografia perfeita?
E há aquele poema do António Gedeão, a Lágrima de Preta:
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
Mas há mais na lágrima do que o cloreto de sódio que a deixa salgada.
Comprei uma de produção nacional. É um frasquinho conta-gotas,
aperta-se ligeiramente para só soltar uma gota, depois arde um pouco em
contacto com aqueles tecidos delicados e finalmente sente-se um pouco de
alívio, os olhos já não secos, um pouco mais confortáveis, sem aquela
secura que é como se fossem picos que não nos deixam ler nem olhar em
volta e que fazem ter medo de complicações, e que esfregamos sem saber
se uma pestana entrou por ali ou se é outra coisa, com os olhos não se
brinca.
Num dia de ventania, entrou-me uma limalha de ferro num olho e
tiraram-ma no hospital. Estranhíssimo, uma minicirurgia com anestesia
local mas pela natureza da coisa estava a ver tudo o que se passava, a
agulha, as mãos do médico, tudo sem dor e depois um penso por um dia.
As lágrimas que comprei são isto: hidroxipropilmetilcelulose a 2,5
mg/ml, após a abertura do frasco usar no prazo de 28 dias, diz o frasco.
Como quando receitaram aos meus filhos água do mar.
Vais à farmácia e compras água do mar para desentupir o nariz.
Estás a gozar, para isso vou à praia.
Está muito frio, um temporal, a criança tem febre, não podes levá-la à
praia nem pode mergulhar. Vais à farmácia e compras água do mar.
Mas é mesmo água do mar?
Purificada, esterilizada, água do mar.
Tem água do mar?
Que marca quer?
Aperta-se o frasco, em vez de tampa há uma espécie de borrifador que
atira água do mar pelas narinas e daí a um bocado estás a respirar. No
verão vai-se diretamente à praia, mas há menos narizes entupidos nessa
altura. Acho que há menos.
O problema com as lágrimas é que as identifico com sentimentos,
afetos, alegrias, desgostos, ou até uma cena pindérica num filme. ET phone home. A Canção com Lágrimas
do Adriano, poema de Manuel Alegre. De ir às lágrimas, diz-se. Comprar
lágrimas não é a mesma coisa que trazer da farmácia pastilhas para a
garganta. Agora ando sempre com um frasquinho na carteira, de vez em
quando os olhos começam a incomodar e dou-lhes uma gota a cada um. Ainda
não as provei, não sei se são salgadas.
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