11/03/2016

RICARDO COSTA

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Discutir a morte

As declarações da bastonária dos enfermeiros não devem ser mais uma oportunidade perdida para colocar a eutanásia e a distanásia na lei e nas práticas deontológicas.

A pacatez enraizada dos nossos costumes sofre, por vezes, um abalo e um desconforto. Não somos povo para desejar grandes mudanças, ainda que quando tivéssemos mudado, geralmente em tempos de crise, carestia e urgência, mudámos para mais e melhor. Não somos um povo de sobressalto, mesmo que tivéssemos arrancado para a independência por causa do desafio de um filho contra o poder da mãe. Não dispomos de um rasgo coletivo que mobilize, sem prejuízo de uma forte identidade e de um estado de alma quando o estímulo é promovido e a motivação é acalentada. Somos assim e não queremos que nos incomodem muito com as verdades escondidas e as dissimulações evidentes. Há corrupção? Claro, mas não nos falem disso. Há influências traficadas fora da lei? Todos sabemos, contudo é melhor estar longe desses salões e corredores. Há dinheiros públicos mal gastos e bancos a falir por incompetência e ganância? Está à vista; todavia, os tribunais e as “autoridades” é que sabem e fazem o seu trabalho. Há professores a serem agredidos e insultados nas escolas? É conhecido, mas alguém há de resolver. Há pessoas cuja inação é subsidiada pelo dinheiro dos contribuintes em prejuízo da assistência efetiva à miséria e à carência? Assim será, mas “é assim” (como agora se diz). Quando alguém ilumina as verdades para as interrogações, assume as decisões e verbaliza as hipocrisias, o abalo aparece e o desconforto grassa.

É este o país em que vivemos. Por isso aprecio esses momentos de abalo no (aparentemente) pacato viver social, uma verdadeira oportunidade para avanço. Aprecio, portanto, personagens como Ana Rita Cavaco, bastonária dos enfermeiros, que apenas confirmou, em breve aceno e esclarecimentos suplementares, o que vamos sabendo – pela experiência própria ou pela narração dos próximos e conhecidos – como prática e reflexão médicas: na antecâmara da morte certa, ditada pela invalidade irreversível dos tratamentos, alivia-se a dor e suspendem-se ou não se iniciam novas terapêuticas; estabiliza-se o doente em sofrimento com sedação calmante e discutem-se as formas de reduzir o drama terminal em concílio com a família; remete-se o paciente para casa tendo em conta um fim aconchegado, ainda que eventualmente mais rápido.

Daí até ao tema da morte assistida, a eutanásia a pedido do doente lúcido e consciente, é o passo seguinte. Aquela que, na sombra, alguns confessam ou suspeitam. Aquela que ninguém pode censurar que se analise, para além da tensão e responsabilidade da vida dos médicos e dos enfermeiros, e, ato seguinte, se converta em matéria expressa da lei – como se fez com a interrupção da gravidez. Como ninguém pode censurar que se problematize a distanásia, o prolongamento artificial de um doente incurável, tantas vezes a pedido da família crente na “ligação à máquina”. Em suma, o ancestral tema da morte digna. Ou da dignidade na morte, olhando de frente para a degradação e a perda da autonomia. Que discutimos e ensinamos nas faculdades de Medicina e de Direito, tendo em vista o modo e o conteúdo das opções a traduzir em lícito e ilícito e nos princípios da deontologia. Que se discuta em sociedade é apenas prova de civilização que não devemos desperdiçar escondidos nas consciências e nos preconceitos.

Em nome deles, somos um país de comissões e de inquéritos. Que tantas vezes não servem para mais do que um caso concreto. E, pelo caminho, acrescentam apenas estigma sobre a coragem e a frontalidade. Se este fosse mais um desses casos, seria um enorme desperdício.

Professor de Direito da Universidade de Coimbra. Jurisconsulto

IN "i"
03/03/16


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