16/02/2016

TIAGO GILLOT

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Lei de combate 
aos falsos recibos verdes: 
um balanço para avançar

Em pouco tempo e apesar das suas limitações, esta lei atingiu resultados inéditos: a impunidade foi finalmente desafiada, a actividade inspectiva tornou-se mais eficaz e foram regularizadas mais de mil situações de falso recibo verde.

A lei de combate aos falsos recibos verdes, aprovada na sequência da iniciativa legislativa cidadã que se bateu por uma "Lei Contra a Precariedade", constitui uma inovação jurídica para actuar numa realidade que se impôs de forma brutal. Apesar do texto final ter resultado de um trabalho de especialidade em comissão parlamentar, depois aprovado por unanimidade, esta lei foi uma conquista do movimento. Um avanço que permitiu, pela primeira vez, desafiar a rotina da ilegalidade e apontar um caminho possível para enfrentar o off-shore laboral em que se transformou o recurso ao falso trabalho independente.

Mais de dois anos passados, importa fazer um balanço da sua aplicação, avaliar os resultados e apontar caminhos. Um debate importante, para o qual é útil conhecer posições e argumentos, em particular num momento em que existe um compromisso político para alterar esta legislação e foram já entregues no parlamento propostas nesse sentido.

Antes de mais, o que mudou com esta legislação? A Lei 63/2013 centra-se no objectivo de regularizar as situações de falso recibo verde. Ou seja, garantir o direito ao contrato de trabalho ilegalmente negado ao trabalhador, procurando manter essa relação laboral. Trata-se de um objectivo difícil, dado o contexto de extraordinária fragilidade em que se encontra quem trabalha a falsos recibos verdes, nomeadamente devido à chantagem do despedimento. A lei prevê, assim, a combinação de dois tipos de mecanismos: uma maior eficácia na acção da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), que, quando detecta estas situações, pode agora notificar a empresa incumpridora para celebrar o contrato de trabalho em falta; e, em caso de recusa em regularizar a situação de imediato, dá-se o encaminhamento automático para a via judicial, por iniciativa do Ministério Público, num processo urgente que visa o reconhecimento da relação laboral.

A originalidade desta solução deve-se ao facto de ter nascido da mobilização e da experiência concreta da luta contra a precariedade, procurando actuar onde importa: converter a precariedade em trabalho com direitos, libertando o trabalhador de tomar a iniciativa num processo de regularização que, dessa forma, só poderia custar-lhe o seu trabalho. Antes desta lei, os poucos casos em que trabalhadores tentaram ver reconhecidos os seus direitos em tribunal correspondiam a situações em que já tinham perdido o trabalho.
Em pouco tempo e apesar das suas limitações, esta lei atingiu resultados inéditos: a impunidade foi finalmente desafiada, a actividade inspectiva tornou-se mais eficaz e, concretamente, foram regularizadas mais de mil situações de falso recibo verde, a maioria das quais sem ser necessário avançar para tribunal. Um cenário impossível sem os mecanismos agora em vigor.

Julgar os novos mecanismos inaugurados pela Lei 63/2013 implica, portanto, uma posição sobre esta questão essencial: deveríamos ter deixado tudo como sempre foi, desistindo de tentar a regularização efectiva das situações de falso recibo verde, procurando que o trabalhador aceda ao vínculo a que tem direito e deixando apenas a possibilidade de reclamar créditos laborais quando já ficou sem trabalho? Ou devemos, por outro lado, melhorar e aprofundar a via da regularização, tornando-a mais eficaz e, desta forma, desincentivar também as práticas ilegais das empresas?

Esta mudança tem suscitado um debate vivo. Sem surpresa, despertou forte oposição entre os patrões habituados à impunidade, como o comprovam os sucessivos pedidos de inconstitucionalidade, sempre recusados pelo Tribunal Constitucional. Há também quem, entre os agentes de justiça, tenha levantado dúvidas – “perplexidades”, como anunciava um recente colóquio do Supremo Tribunal de Justiça sobre o tema –, até porque a aplicação destes mecanismos não foi, não poderia ser, isenta de dificuldades. Mas muitas têm sido as vozes que, no terreno, têm sublinhado a importância desta legislação, identificando as suas limitações e defendido a necessidade de a aprofundar. Basta constatar, além da actuação das entidades com competência na matéria, os diversos posicionamentos no sector da justiça, de agentes do Ministério Público ou por parte dos responsáveis da ACT.

A Associação de Combate à Precariedade empenhou-se na mobilização por esta mudança e, dois anos após a sua aplicação, confirma a importância do caminho iniciado com a Lei 63/2013. No entanto, é necessário fazer correcções em vários aspectos. É, sem dúvida, possível e urgente fazer muito mais.
Desde logo, é necessário melhorar no que é essencial: conferir uma maior protecção ao trabalhador, que continua vulnerável à chantagem do despedimento durante o processo de regularização. Defendemos, como é também opinião do Inspector-Geral do Trabalho, que a ACT deve ter competências reforçadas para assegurar essa protecção logo que a situação é detectada, impedindo retaliações até que a regularização esteja concluída.

Por outro lado, nos casos em que as situações seguem para tribunal, é preciso garantir que a acção é inequivocamente guiada pelo interesse público e que, também aqui, se protege o trabalhador do assédio patronal. Nenhum suposto “acordo” pode permitir que se aceite, em pleno tribunal, uma situação potencialmente ilegal. Em coerência com esta orientação, além da clarificação do papel essencial do Ministério Público, deve impedir-se que a desigualdade seja um trunfo em audiência, nomeadamente eliminando a existência da “conciliação” ou a chamada do trabalhador como testemunha.

Estas alterações são hoje uma possibilidade real. O acordo que viabilizou o actual ciclo político assumiu o compromisso com esta necessidade, confirmado no programa do Governo. Uma audição recente no parlamento juntou especialistas, activistas e responsáveis institucionais, incluindo o ministro Vieira da Silva, tendo originado já a entrega de iniciativas legislativas que, entre outras alterações, prevê medidas que respondem às preocupações atrás identificadas. Espera-se que o debate produza a necessária concretização. Estamos perante um progresso verdadeiramente histórico, que nos mostra que vale a pena lutar e a mobilização pode conseguir resultados.

Em suma, a aplicação desta legislação provou que era necessário vencer décadas de inacção e conservadorismo. Dado o primeiro passo, é agora necessário avançar com coragem para garantir a devida protecção às vítimas dos falsos recibos verdes. Enfrentamos uma das mais eficazes estratégias de sobre-exploração nas últimas décadas, que banalizaram a total desprotecção e uma bitola ameaçadora para o conjunto da classe trabalhadora. Inverter esta realidade será duro e demorado, numa batalha que ultrapassa em muito os instrumentos legais. Mas ignorar esta dimensão ou, pior ainda, retroceder em vez de avançar neste caminho, seria simplesmente desistir.

Representante da ILC “Lei Contra a Precariedade” e membro da Ass. de Combate à Precariedade – Precários Inflexíveis

IN "PÚBLICO"
15/02/16


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