22/02/2016

RUI TAVARES GUEDES

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Fernanda Ribeiro,
 o ouro olímpico e 
"a farmacêutica" Wang Junxia

Moniz Pereira chamava-lhe "a farmacêutica" e confirmou-se que tinha razão: numa carta escrita há 20 anos, e agora divulgada, a atleta chinesa Wang Junxia confessava que era obrigada a tomar substâncias proibidas. Mas, mesmo assim, não chegou para impedir o título olímpico de Fernanda Ribeiro, nos Jogos de Atlanta

A final dos 10 mil metros femininos nos Jogos Olímpicos de Atlanta foi uma das mais emocionantes de sempre e um momento inesquecível para o desporto português. Na noite quente e húmida de 3 de agosto de 1996 (10 horas da noite nos EUA, mas já 3 da manhã do dia seguinte em Portugal), duas atletas chegaram juntas à entrada para a última volta: a chinesa Wang Junxia e a portuguesa Fernanda Ribeiro. O ritmo das duas era alucinante, o mais rápido alguma vez registado numa prova olímpica feminina desta distância. Mas após passarem 9600 metros a afastarem-se das restantes adversárias, elas tinham agora apenas 400 metros para discutir quem se sagraria campeã olímpica. Um duelo de titãs entre a recordista mundial dos 10 mil metros (Junxia) e a recordista mundial dos 5 mil (Ribeiro).

Quem viu não esquece aqueles momentos de enorme nervosismo e ansiedade. Em especial a partir do momento em que, a 250 metros da meta, Wang Junxia acelerou o passo, como que embalada para a vitória e pronta a repetir o triunfo alcançado, dias antes, nos 5 mil metros. Fernanda Ribeiro tentava, aparentemente, segurar o segundo lugar e não perder demasiados metros para a chinesa. Mas não, afinal ela ainda tinha mais uma reserva de energia escondida nas pernas e muita força de vontade na cabeça e no coração. À entrada da recta final, a portuguesa acelerou, acelerou, acelerou... e, de repente, ultrapassou a chinesa, junto à linha. Logo a seguir, ergueu os braços e cumpriu o sonho: campeã olímpica.

Nas bancadas do Estádio Olímpico de Atlanta, a vitória de Fernanda Ribeiro foi presenciada pelos até então dois únicos campeões olímpicos portugueses (Carlos Lopes e Rosa Mota), mas também pelo prof. Moniz Pereira, velha raposa do atletismo português. Os primeiros elogiaram a tenacidade e o espírito combativo da atleta portuguesa, com as palavras normais de circunstância que se dizem nesse momento aos jornalistas, sublinhando que sempre acreditaram que ela podia derrotar a chinesa que, até aquela noite, parecia imbatível.

Já Moniz Pereira, treinador veterano, habituado a muitas batalhas e a jogos de bastidores nas pistas de atletismo, foi mais incisivo na análise, embora sem precisar de utilizar muitas palavras. "Ganhámos à farmacêutica!», limitou-se a dizer, olhando-me fixamente. Foi o único que, na altura da euforia de uma vitória histórica, fez questão de não esquecer as muitas suspeitas que já então circulavam sobre as atletas chinesas das corridas de fundo.

Vinte anos depois, a frase de Moniz Pereira voltou a ganhar atualidade e absoluta pertinência. Segundo relata o jornal South China Morning Post, de Hong Kong, foi agora descoberta uma carta, alegadamente assinada por Wang Junxia, em que ela assume ter feito parte de um programa sistemático de dopagem, levado a cabo na China.

A carta, redigida em mandarim e e co-assinada por mais nove outras atletas, terá sido escrita em 1995, e revelava uma espécie de rebelião das desportistas contra os métodos do treinador Ma Junren - que, nessa época, liderava um "exército" de raparigas que pulverizou uma série de recordes mundiais e dominou, por completo, as provas de meio fundo e fundo a nível planetário.

A carta, cuja veracidade está a ser investigada pela Federação Internacional de Atletismo, é datata de março de 1995 e terá sido dirigida a um jornalista chinês chamado Zhao Yu, mas nunca foi publicada. Nela, as atletas denunciam que foram "forçadas a tomar grandes doses de fármacos ilegais ao longo dos anos", acusando Ma Junren de as tratar "como animais".

Os factos são elucidativos: nos primeiros cinco anos da década de 1990, as atletas treinadas por Ma Junren bateram um total de 66 recordes nacionais e mundiais. A principal estrela do "exército de Ma" era Wang Junxia, que, em apenas cinco dias, entre 8 e 13 de setembro de 1993, conseguiu a proeza de estabelecer dois novos recordes do mundo, nos 3 mil metros (8:06.11) e nos 10 mil metros (29:31.78), com marcas tão extraordinárias que ainda hoje permanecem imbatíveis (e na distância maior, o segundo melhor tempo de sempre ainda continua a 22 segundos de distância!).

Nos Jogos de Atlanta, Wang Junxia já não era treinada por Ma Junren, com quem tinha rompido alguns meses antes, o que ajuda a reforçar a veracidade da carta agora descoberta. Mas a verdade, também, é que ao longo da sua carreira, a atleta chinesa nunca foi apanhada em qualquer controlo anti-doping. E a forma como perdeu para uma super Fernanda Ribeiro, naquela recta final de Atlanta, até a ajudou a tornar-se mais humana. Embora sem nunca perder a fama de "farmacêutica"...

Recorde aqui a corrida completa da final dos 10 mil metros femininos nos Jogos Olímpicos de Atlanta, a 3 de agosto de 1996, com a vitória de Fernanda Ribeiro:


 

 

IN "VISÃO"
06/02/16

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