Fernanda Ribeiro,
o ouro olímpico e
"a farmacêutica" Wang Junxia
Moniz Pereira chamava-lhe "a farmacêutica" e confirmou-se que tinha razão: numa carta escrita há 20 anos, e agora divulgada, a atleta chinesa Wang Junxia confessava que era obrigada a tomar substâncias proibidas. Mas, mesmo assim, não chegou para impedir o título olímpico de Fernanda Ribeiro, nos Jogos de Atlanta
A final dos 10 mil metros
femininos nos Jogos Olímpicos de Atlanta foi uma das mais emocionantes
de sempre e um momento inesquecível para o desporto português. Na noite
quente e húmida de 3 de agosto de 1996 (10 horas da noite nos EUA, mas
já 3 da manhã do dia seguinte em Portugal), duas atletas chegaram juntas
à entrada para a última volta: a chinesa Wang Junxia e a portuguesa
Fernanda Ribeiro. O ritmo das duas era alucinante, o mais rápido alguma
vez registado numa prova olímpica feminina desta distância. Mas após
passarem 9600 metros a afastarem-se das restantes adversárias, elas
tinham agora apenas 400 metros para discutir quem se sagraria campeã
olímpica. Um duelo de titãs entre a recordista mundial dos 10 mil metros
(Junxia) e a recordista mundial dos 5 mil (Ribeiro).
Quem viu
não esquece aqueles momentos de enorme nervosismo e ansiedade. Em
especial a partir do momento em que, a 250 metros da meta, Wang Junxia
acelerou o passo, como que embalada para a vitória e pronta a repetir o
triunfo alcançado, dias antes, nos 5 mil metros. Fernanda Ribeiro
tentava, aparentemente, segurar o segundo lugar e não perder demasiados
metros para a chinesa. Mas não, afinal ela ainda tinha mais uma reserva
de energia escondida nas pernas e muita força de vontade na cabeça e no
coração. À entrada da recta final, a portuguesa acelerou, acelerou,
acelerou... e, de repente, ultrapassou a chinesa, junto à linha. Logo a
seguir, ergueu os braços e cumpriu o sonho: campeã olímpica.
Nas
bancadas do Estádio Olímpico de Atlanta, a vitória de Fernanda Ribeiro
foi presenciada pelos até então dois únicos campeões olímpicos
portugueses (Carlos Lopes e Rosa Mota), mas também pelo prof. Moniz
Pereira, velha raposa do atletismo português. Os primeiros elogiaram a
tenacidade e o espírito combativo da atleta portuguesa, com as palavras
normais de circunstância que se dizem nesse momento aos jornalistas,
sublinhando que sempre acreditaram que ela podia derrotar a chinesa que,
até aquela noite, parecia imbatível.
Já Moniz Pereira, treinador
veterano, habituado a muitas batalhas e a jogos de bastidores nas
pistas de atletismo, foi mais incisivo na análise, embora sem precisar
de utilizar muitas palavras. "Ganhámos à farmacêutica!», limitou-se a
dizer, olhando-me fixamente. Foi o único que, na altura da euforia de
uma vitória histórica, fez questão de não esquecer as muitas suspeitas
que já então circulavam sobre as atletas chinesas das corridas de fundo.
Vinte anos depois, a frase de Moniz Pereira voltou a ganhar atualidade e absoluta pertinência. Segundo relata o jornal South China Morning Post,
de Hong Kong, foi agora descoberta uma carta, alegadamente assinada por
Wang Junxia, em que ela assume ter feito parte de um programa
sistemático de dopagem, levado a cabo na China.
A carta, redigida
em mandarim e e co-assinada por mais nove outras atletas, terá sido
escrita em 1995, e revelava uma espécie de rebelião das desportistas
contra os métodos do treinador Ma Junren - que, nessa época, liderava um
"exército" de raparigas que pulverizou uma série de recordes mundiais e
dominou, por completo, as provas de meio fundo e fundo a nível
planetário.
A carta, cuja veracidade está a ser investigada pela
Federação Internacional de Atletismo, é datata de março de 1995 e terá
sido dirigida a um jornalista chinês chamado Zhao Yu, mas nunca foi
publicada. Nela, as atletas denunciam que foram "forçadas a tomar
grandes doses de fármacos ilegais ao longo dos anos", acusando Ma Junren
de as tratar "como animais".
Os factos são elucidativos: nos
primeiros cinco anos da década de 1990, as atletas treinadas por Ma
Junren bateram um total de 66 recordes nacionais e mundiais. A principal
estrela do "exército de Ma" era Wang Junxia, que, em apenas cinco dias,
entre 8 e 13 de setembro de 1993, conseguiu a proeza de estabelecer
dois novos recordes do mundo, nos 3 mil metros (8:06.11) e nos 10 mil
metros (29:31.78), com marcas tão extraordinárias que ainda hoje
permanecem imbatíveis (e na distância maior, o segundo melhor tempo de
sempre ainda continua a 22 segundos de distância!).
Nos Jogos de
Atlanta, Wang Junxia já não era treinada por Ma Junren, com quem tinha
rompido alguns meses antes, o que ajuda a reforçar a veracidade da carta
agora descoberta. Mas a verdade, também, é que ao longo da sua
carreira, a atleta chinesa nunca foi apanhada em qualquer controlo
anti-doping. E a forma como perdeu para uma super Fernanda Ribeiro,
naquela recta final de Atlanta, até a ajudou a tornar-se mais humana.
Embora sem nunca perder a fama de "farmacêutica"...
Recorde aqui a corrida completa da final dos 10 mil metros
femininos nos Jogos Olímpicos de Atlanta, a 3 de agosto de 1996, com a
vitória de Fernanda Ribeiro:
IN "VISÃO"
06/02/16
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