Os saudáveis populistas
Porque não havia equipa de neurocirurgia em São José? Porque são interrompidos tratamentos rigorosos nos feriados? Porque o SNS se organizou em função não dos doentes mas sim das corporações do sector
Marcelo Rebelo de Sousa: “Pode-se poupar em
muita coisa, mas poupar na saúde dos portugueses não é um bom princípio
para quem quer afirmar a justiça social e construir um Estado
democrático mais justo”, declarou aos jornalistas, no início de uma
visita ao Hospital de São José, em Lisboa.
Maria de Belém: “Tesouraria” não pode estar à frente “da defesa do valor da vida”.
Marisa Matias, considera que a morte de um homem
no São José é uma consequência da austeridade imposta pelo anterior
Governo.“Foi uma política que matou gente. Foi denunciado em devido
tempo que esta política de austeridade e este ciclo de empobrecimento
que estava a ser posta em prática pelo Governo de direita levaria mesmo a
muitas vidas que se perderam”.
Perante este tipo de considerandos, sobretudo os provenientes de
Marcelo Rebelo de Sousa e de Maria de Belém, apetece perguntar: pensam
estes candidatos à Presidência da República recorrer ao SNS quando
tiverem problemas de saúde? Caso respondam afirmativamente, estimam
viver quantos anos mais? É que para falar deste modo, como se não
houvesse amanhã, tem de se estar dotado da forte convicção (eu diria
antes fé) de que se vai gozar de uma saúde de ferro até àquele
derradeiro momento em que a bondade de uma morte súbita porá fim a vida
tão saudável. (De caminho também é indispensável estar disposto a descer
moralmente muito para subir um pouco mais nas sondagens, mas esse é
outro assunto.) Afinal a quem não sabe que morte o espera e de que
doenças vai sofrer restas apenas uma pragmática certeza: todos podemos
acabar num hospital. Que este se organize em função dos doentes ou das
questões contratuais do seu pessoal não é a mesma coisa.
Mas vamos ao que suscitou esta sucessão de declarações dos candidatos
à Presidência da República: a morte a 14 de Dezembro de um homem de 29
anos, no Hospital de São José, depois de ter sido internado no dia 11.
No momento do internamento foi-lhe diagnosticada uma hemorragia cerebral
provocada por um aneurisma o que obrigava a uma intervenção cirúrgica
rápida. A intervenção nunca aconteceu porque dia 11 era sexta-feira e no
Hospital de São José ao fim-de-semana (a sexta-feira à tarde já entra
no conceito de fim-de-semana?), não se encontravam equipas de
neurocirurgia. E porque não se encontravam equipas de neurocirurgia em
São José? Pela mesma razão porque os tratamentos mais rigorosos são
interrompidos com a maior das naturalidades ao fim-de-semana e feriados:
porque no país em que oficialmente a saúde não tem preço nem se discute
quanto nos custa e como funciona o que não tem preço, florescem os mais
fantásticos negócios e crescem destravados privilégios à conta desses
dogmas.
Tanto quanto se sabe – e sabe-se pouco porque em geral nestas
discussões sobre os serviços públicos ditos gratuitos evita-se dar
números enfatizado sim a questão abstracta dos “meios”, dos “cortes”,
dos “recursos” que ora existem ora são cortados… – em 2013, os
enfermeiros do Hospital de São José, declararam-se indisponíveis para
fazerem turnos extraordinários aos sábados e domingos. Médicos e
radiologistas secundaram-nos. Segundo o Expresso esta recusa
deveu-se a uma redução de aproximadamente 50 por cento dos valores que
médicos e enfermeiros então cobravam por cada dia de prevenção (sem
presença física no hospital) durante o fim-de-semana. Ou seja os médicos
passariam de 500 para 250 euros e os enfermeiros de 260 para 130
(valores aproximados).
Não estou a dizer que seja muito ou pouco. Bem ou mal pago. Mas para
uma saúde que não tem preço digamos que é um preço muito alto para estar
de prevenção. À conta da saúde que não tem preço, do “na saúde não se
poupa” e da imagem cara a Maria de Belém da tesouraria versus o valor da
vida acabámos a criar um monstro de duas faces. De um lado,
resguardadas na opacidade da saúde dita gratuita estão as corporações a
aumentarem os seus privilégios e os seus ganhos (neste caso concreto é
dificílimo perceber quanto se pagava às equipas de neurocirurgia antes
de 2013, quanto se pagou em 2014 e 2015 e quanto se vai pagar agora que
foi anunciado um novo acordo). Na outra face estão os políticos a
dizerem às pessoas aquilo que eles, políticos, acham que os eleitores
querem ouvir. E nenhuma destas faces está interessada em discutir a
sobrevivência do SNS ou a sua qualidade. O que lhes interessa é a sua
sobrevivência pessoal dentro do SNS (caso das ordens, sindicatos,
interesses na área do medicamento) ou, no caso dos políticos, evitar ser
destruído pelas corporações do SNS como aconteceu com Leonor Beleza ou
acabar discreta mas firmemente afastado por elas, como sucedeu com
Correia de Campos.
Contudo, e para lá do que dizem e sobretudo do que calam as duas
faces, Portugal gasta muito com o SNS, gasta comparativamente mais que
outros países mais ricos – mesmo com os cortes, os gastos totais com a
Saúde em Portugal mantiveram-se acima da média da UE – e tanto Marcelo
Rebelo de Sousa como Maria de Belém sabem-no. Quanto a Marisa Matias não
sei se sabe ou se tal como Marcelo e Maria de Belém faz de conta que
não sabe mas espero que o mais rapidamente possível apresente dados,
números e casos da “tanta gente” que no seu dizer morreu em consequência
dos “cortes na saúde”. E de caminho pode precisar quanta gente cabe em
“tanta gente”?
Dos restantes candidatos já nem me apeteceu procurar o que disseram.
Aliás, digam eles o que disserem, ou se poupa nos gastos da Saúde ou
dentro em pouco, para espanto da dra. Maria de Belém, não há tesouraria
que suporte os cada vez mais caros tratamentos médicos e os também cada
vez mais longos e mais dispendiosos cuidados de saúde de uma população
envelhecida. E para surpresa de Marcelo, constataremos demasiado tarde
não só que os recursos da saúde são finitos como que, bem mais grave,
estão cativos das corporações do sector. Até lá o populismo continua a
ser um tónico muito recomendado e de provas dadas. Pode usar-se sem
moderação até porque os efeitos secundários são sempre sofridos pelos
outros.
IN "OBSERVADOR"
27/12/15
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