Amores e amorzinhos
Há encontros que gostaria de ter presenciado, mosca
discreta sem interferência na conversa. Não queria apenas ouvir as
palavras, queria observar os gestos, os olhares, as atitudes. Um deles
está relatado e é extraordinário: Ingmar Bergman a jantar com Woody
Allen, em Nova Iorque, em 1975. O encontro foi presenciado pela mulher
de Bergman e por Liv Ullmann, que tiveram de ocupar os silêncios dos
dois. Pouco falaram um com o outro, limitavam-se a olhar-se. «Almost lovingly», contou Liv. Quase com amor.
Imagino assim o encontro que não aconteceu entre Álvaro Cunhal e José
Pacheco Pereira. A desconfiança e a curiosidade de um, a admiração e a
curiosidade do outro. Ou: a desconfiança, a curiosidade e a admiração de
cada um pelo outro, e outras qualidades que duravam uns minutos a
enumerar e ainda ficava curta a frase.
Saiu nesta semana o quarto volume da biografia política de Cunhal por
Pacheco. Foi lançado intencionalmente na Fortaleza de Peniche, de onde o
primeiro fugiu numa operação espetacular a 3 de janeiro de 1960. O
livro leva-nos ao início do fim do regime, com Salazar a cair da cadeira
em 3 de agosto de 1968 e a ficar pateticamente convencido de que
mantinha as rédeas do país até à morte, em 27 de julho de 1970. São oito
anos em que vida de Cunhal muda muitíssimo, pessoal e politicamente, e
em que o mundo comunista muda também, com a invasão da Checoslováquia
pelos tanques da União Soviética e a rutura dos dois maiores partidos
comunistas – o soviético e o chinês.
O livro de Pacheco Pereira lê-se, como acontecia nos anteriores, com
uma fluidez que resulta da capacidade de entrecruzar os diferentes
planos da narrativa. Há o nascimento da filha Ana, a quem se mantém
ligado, de perto ou à distância. Imaginamos Cunhal a colar legendas
traduzidas em livros de banda desenhada (Tintin, entre outras) para que a
filha as possa ler. Ou a explosiva discussão em Praga com Flausino
Torres, o pai de Cláudio Torres, em Praga, pouco depois do fim abrupto
da experiência de Dubcek, o momento que determinou o afastamento de
muitos militantes.
O espírito de colecionador de Pacheco Pereira não é um fim em si
mesmo mas um caminho para ligar pontos como naqueles jogos infantis que
só revelam o desenho quando traçamos riscos entre os pontos numerados.
Fui buscar um outro livro que resulta desta persistência. Chama-se Amorzinho
e reproduz a correspondência de Lourdes e Alfredo entre 1934 a 1943. As
cartas resgatadas do lixo deste casal banal mostram-nos o caminho que
vai do momento em que se conhecem até depois do casamento e nascimento
do filho. Uma última troca de cartas, entre os pais e o filho com 12
anos, encerra a história. Pelo prefácio da organizadora, Rita Maltez,
conhecemos mais dados sobre o casal, ela costureira, ele contabilista.
Aprendemos muito sobre aqueles anos, que têm em pano de fundo a Segunda
Guerra Mundial, e acontecimentos como o ciclone de 1941, os filmes que
vão vendo. Percebemos como ela se embriaga de desejo e faz amor com ele
antes do casamento, e se aflige com «atrasos», e, anos mais tarde, faz
um porto de uma gravidez inesperada. Ele, sabido e aventureiro, confessa
namoros com outras na vida de terra em terra a que a profissão o
obriga, e manipula a ingenuidade dela sabendo como os ciúmes a consomem.
Tudo isto está também na coleção gigantesca de Pacheco Pereira na
Marmeleira, no antigo quartel dos bombeiros que transformou em
biblioteca, e seria um aglomerado de inertes se não fosse tudo lido,
sistematizado e estudado. Para nos dar a biografia de Álvaro Cunhal e
também as costuras de Lourdinhas.
IN "NOTÍCIAS MAGAZINE"
13/12/15
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