A falsa tese
da marginalização política
da extrema-esquerda
1. A comunicação presidencial da semana passada teve, entre outras, a
consequência nefasta de consolidar a ideia de que ao longo dos
últimos 40 anos se viveu num regime de apartheid político com a
exclusão dos partidos situados à esquerda do PS.
Com o apoio activo de
alguns sectores do Partido Socialista – nuns casos por pura má-fé,
noutros por manifesto desconhecimento da nossa história democrática – os
partidos da extrema-esquerda têm vindo a impor a tese segundo a qual
foram objecto de uma ostensiva marginalização parlamentar de carácter
não democrático. Ora isso pura e simplesmente não é verdade. E não só
não é verdade, como constitui um monumental embuste directamente filiado
na tradição leninista e estalinista de falsificação primária dos
fenómenos históricos. Que aqueles que ainda hoje se reconhecem nessa
tradição política se dediquem a tais práticas não pode constituir motivo
de especial surpresa; que haja sectores do Partido Socialista dispostos
a aderir acriticamente a tal tipo de procedimentos e até a participarem
entusiasticamente neles já é razão para uma reacção indignada.
O
conceito de “arco da governação” nunca teve, da parte de quantos
perfilham os princípios e valores de natureza demo-liberal, um
significado ontológico ou sequer normativo. Tão-pouco ele resultou de
uma vontade premeditada de exclusão de quem quer que fosse do debate
político nacional. E de tal forma assim foi que em bom rigor essa
exclusão jamais se verificou. Senão vejamos: os deputados do PCP e do
Bloco de Esquerda – uns logo desde o início da Segunda República e os
outros mais recentemente – contribuíram para a tomada de decisões
parlamentares da maior relevância pública.
Foram determinantes para
derrubar governos, concorreram para a aprovação de legislação de
inegável importância, participaram activamente no processo de
fiscalização da acção executiva. Carece por isso de qualquer fundamento a
proclamação em voga de que esses partidos vão agora ser resgatados a
uma espécie de condição de clandestinidade parlamentar a que estariam
votados.
Ao longo destes 40 anos a extrema-esquerda estabeleceu
como verdade axiomática o princípio de que a direita começava na sua
própria fronteira e que, no fundo, não haveria substanciais diferenças
entre o PS, o PSD e o CDS-PP. Recordemos como fundamentavam tal
afirmação. No 25 de Novembro, o PS, aliado à direita e a sectores
conservadores das forças armadas, tinha interrompido um processo
revolucionário destinado à edificação de uma verdadeira sociedade
socialista; ao liderar o processo conducente à adesão de Portugal à
então Comunidade Económica Europeia, o PS desvelava a sua genuína
natureza de partido empenhado na consolidação de um modelo de sociedade
situado nos antípodas do modelo autoritário e colectivista preconizado
pelos seguidores da ortodoxia leninista pró-soviética; ao participar
activamente em sucessivos processos de revisão constitucional, visando a
depuração da lei fundamental de uma ganga pró-marxista manifestamente
alheia aos caminhos democraticamente escolhidos ao longo de sucessivos
actos eleitorais, o PS foi identificado com os adversários dos “valores
de Abril”.
Perante tudo isto não é de espantar que a
extrema-esquerda nunca tenha votado senão contra todo e qualquer
projecto de Orçamento do Estado apresentado pelos vários governos
socialistas e nunca tenha manifestado a mais ligeira aproximação sempre
que estiveram em causa votações relacionadas com a adesão e participação
de Portugal no projecto europeu. Bem pelo contrário. Nessas ocasiões
usaram de uma retórica extremista com o intuito de apoucar as legítimas
opções feitas pelo Partido Socialista. Fizeram-no impiedosamente,
atacando o esforço bem sucedido de construção e ampliação do Estado
social que constitui património da nossa democracia e factor de promoção
da liberdade e da igualdade.
Como tal, só é possível extrair uma
conclusão séria: a extrema-esquerda parlamentar optou deliberadamente –
com uma legitimidade, de resto, inatacável – por um acantonamento
político impeditivo de qualquer participação não só na esfera estrita da
governação, como no horizonte mais vasto de definição das grandes
prioridades nacionais. Não foi excluída: auto-excluiu-se em nome da
fidelidade a um modelo de regime e de organização económica e social
claramente repudiado pela maioria dos cidadãos portugueses.
Tentar
inverter a situação releva de despudorado cinismo político. Seria bom
que alguns actuais deputados do Partido Socialista que andam por aí
levianamente a proferir barbaridades olhassem com mais rigor para a
história do partido que conjunturalmente representam.
IN "PÚBLICO"
29/10/15
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