Bioética na sociedade atual
Se a emergência da bioética se deve à necessidade de
ponderar o impacto da ciência na vida em comunidade, a evolução da
sociedade beneficia em larga escala da crescente difusão do debate
bioético na esfera pública
No passado dia 15 de outubro realizou-se nos Açores, na cidade de
Ponta Delgada, a conferência “Ciência e Sociedade: a bioética em
debate”, inserida num conjunto de iniciativas que marcam os 30 anos da
Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento.
A bioética tem vindo a assumir, desde a sua origem na década de 70,
um enorme impacto no diálogo entre ciência e sociedade, ao abordar as
implicações éticas decorrentes da aplicação das biotecnologias ao bios –
a vida em si mesma –, que engloba a humana, a animal e a ambiental.
Pretende esta transdisciplina, cujo saber se constrói com os
contributos de diferentes áreas, tais como a Filosofia, o Direito, a
Teologia, a Medicina e a Biologia, considerar as questões éticas que
emergem juntamente com a evolução científica.
Após o seu surgimento nos Estados Unidos da América, a bioética
afirmou-se sobretudo numa dimensão biomédica. Os temas a que
inicialmente se dedicou ainda hoje não perderam a sua atualidade,
destacando-se, neste campo, a investigação científica com seres humanos,
o consentimento livre e esclarecido, a alocação de recursos na saúde, a
transplantação de órgãos e tecidos, as técnicas de procriação
medicamente assistida e a relação médico-doente e de profissionais de
saúde entre si.
Com o evoluir dos anos, e sem abandonar esta perspetiva interpessoal,
a reflexão bioética foi-se abrindo a outras expressões de vida,
integrando a relação moral do homem para com a biosfera, onde se incluem
os animais e o ambiente. Assiste-se assim a uma visão mais alargada do
que se entende por comunidade moral, isto é, aquela que merece ser
eticamente respeitada.
Desta forma, é reforçada a responsabilidade do homem para com “a
nossa casa comum”, na expressão do Papa Francisco, e para com o “outro”
que coabita esse mesmo espaço. É por essa razão que a experimentação
animal, a indústria agrícola e pecuária, a extinção de espécies e a
gestão dos meios naturais se encontram na agenda dos mais recentes
discursos da bioética de âmbito nacional e internacional.
Hoje, a bioética mantém-se fiel àquele que sempre foi a seu propósito
inaugural, a saber, o de abordar o desenvolvimento científico sob uma
perspetiva ética e, neste quadro, servir de base conceptual e
fundamentadora de uma melhor regulamentação das práticas. Esta tarefa,
embora à primeira vista complexa, pretende evitar, por um lado, a
instrumentalização do homem tendo em vista os fins científicos e, por
outro, que o próprio homem seja protagonista de uma ação
instrumentalizadora dos recursos não humanos que estão ao seu alcance e
por isso fáceis de explorar.
Se a emergência da bioética se deve à necessidade de ponderar o
impacto da ciência na polis, no sentido da vida em comunidade, então a
evolução da sociedade beneficia em larga escala da crescente difusão do
debate bioético na esfera pública. Recorde-se, a título de exemplo, a
importância de ver esclarecidos os vários argumentos que suportam
questões tão discutidas na atualidade como a maternidade de
substituição, a investigação com embriões, o melhoramento genético
humano e, ainda, as directivas antecipadas da vontade ou testamento
vital.
Em suma, a bioética é um contributo indispensável para a boa ciência e
não um fator impeditivo ou proibitivo ao seu progresso. Os amplos
horizontes que o desenvolvimento técnico-científico nos faz hoje
vislumbrar obrigam impreterivelmente a um olhar bioético que seja capaz
de adequar a ciência das potencialidades incalculáveis numa ciência de
possibilidades eticamente aceitáveis.
* Investigadora do Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar, da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa,
onde está a realizar o doutoramento em Filosofia Moral e Política, com
uma bolsa atribuída pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Foi
coordenadora científica do programa da conferência “Ciência e Sociedade:
a bioética em debate”, inserida no ciclo ‘30 Anos FLAD’
IN "I"
19/10/15
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