A hora e a vez
de António Costa
“The best lack of all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity!”
(W.B. Yeats, “The second coming”, 1919)
“Acaso o nosso destino, tac, vai mudar?”
(Alexandre O’Neill, “Se…”, 1958)
Uma
semana depois de o actual PR ter feito um discurso à Nação que nos
deixa divididos no julgamento a fazer sobre o seu legado – em dez anos
de mandato, Cavaco foi pior quando se calou ou quando disse alguma
coisa? –, paira ainda sobre o país um suspense acerca do nosso futuro.
Já
muito se escreveu e disse sobre quem ganhou e quem perdeu estas
eleições, mas a verdade é que todos puseram a tónica na derrota de
António Costa (as indecorosas guerras internas no PS dão conta disso),
quando, por ironia, é ele – e não Cavaco – quem tem nas mãos, a partir
de agora, a decisão sobre o futuro governo. Isso não lhe facilita a vida
– pelo contrário -, mas é nos momentos difíceis que se revelam os
líderes.
Costa – e é essa a sua enorme responsabilidade histórica -
é agora o fiel da balança: daqui para a frente, nem a dupla
Coelho/Portas, nem o PCP com o Bloco podem sozinhos formar governo. Nem o
PS. Todos terão que fazer compromissos e cedências, mas, sem a anuência
do PS, nenhum deles terá condições para impor um governo ao PR e à AR.
É
certo que o PS (como, aliás, o PSD ou o PP) está longe de ser um
partido coeso; qualquer que seja a sua decisão, Costa irá provocar ondas
de choque internas e contestação dos notáveis e das bases. Como, a
prazo, Coelho e Portas acabarão contestados nos seus partidos, logo que o
poder absoluto de que gozaram durante quatro anos se fragilizar pelos
compromissos que terão de fazer se quiserem manter-se a todo o custo no
poder - ou pela marginalização dos seus partidos, se Costa optar, agora
ou mais tarde, por uma aliança à esquerda.
Mesmo usando um poder
absoluto (com o único escrutínio do TC), desprezando a voz do povo e os
protestos da oposição durante quatro anos, Coelho e Portas tiveram,
desde o primeiro dia, a oposição declarada dos verdadeiros
social-democratas e democratas-cristãos que ainda sobrevivem nos seus
partidos – ironicamente, as famílias políticas que garantiram a paz, a
liberdade e a justiça social na Europa do pós-guerra e ajudaram a criar a
futura União Europeia sonhada por Schuman e Jean Monnet.
Os
números não mentem: neste momento, só 21,9% dos portugueses eleitores
querem a permanência da Coligação. E logo que se torne visível para
todos que o PSD e o PP perderam o poder de dispor sozinhos dos destinos
do país, começará, nos partidos do PaF, a luta interna pela sucessão.
Pelo contrário, se António Costa conseguir colocar o PS no centro da
decisão política nos próximos anos, calará as oposições internas,
reunirá o partido à sua volta e ajudará a eleger o PR de que o país
precisa e de que não dispôs durante estes dez anos de luto da
democracia.
Isso implica saber jogar entre os desejos e a
realidade. Se o BE se apresentou aos eleitores como o Syriza de Janeiro,
o PS foi obrigado a aparecer na campanha com o rosto do Syriza de
Setembro. Goste-se ou não, estamos no euro, sujeitos aos Tratados que
assinámos; e, por enquanto, dependentes das decisões de líderes que não
elegemos, dos “patrões” de uma Europa que não legitimámos e dos
“mercados” que nenhuma força legítima controla. O PS e o resto da
esquerda não devem aceitar passivamente esta loucura neo-liberal que
está a destruir o projecto europeu e a pôr o mundo à beira de uma
catástrofe. Mas, como Tsipras dramaticamente demonstrou, não basta
apresentar-se sem gravata em Bruxelas para que Shauble e Dijsselbloem
cedam às suas justas reclamações. O trauma da humilhação imposta ao
Syriza e ao povo grego pairou sobre a campanha do PS e retirou-lhe a
capacidade de mobilização de que precisava para ter ganho com maioria
absoluta. Mas, ao mesmo tempo, poupou-o à pesada responsabilidade de
governar sozinho dentro de um espartilho imposto pelo Tratado
Orçamental, o que iria causar o descontentamento à sua direita e à sua
esquerda e, a prazo, fazê-lo cair.
A matriz do PS, de que não pode
abdicar, é a defesa da Saúde e da Educação públicas, a justiça social, o
reinvestimento na qualificação profissional, a sustentabilidade da SS, o
reforço do papel social do Estado no estímulo da economia e do emprego,
a independência da Justiça e dos Reguladores.
Por isso, Costa
pode e deve impor à coligação a quem compete tentar formar governo
(sublinho: tentar), as condições para viabilizar o governo sem nele
participar: o fim das políticas de austeridade que se traduziram na
penalização dos mais indefesos, em cortes sucessivos em salários e
pensões e no agravamento de impostos, com as consequências conhecidas no
empobrecimento e no agravamento das desigualdades, na perda de direitos
sociais, no desemprego e na emigração, com a agravante de os objectivos
do défice e da dívida terem sido escandalosamente ultrapassados. Além
de que deve exigir que seja travado de imediato o negócio obscuro da
venda da TAP e revertida a concessão dos transportes públicos
municipais. E propor, ou pelo menos viabilizar, uma auditoria a algumas
privatizações de empresas estratégicas, que foram feitas em condições
pouco transparentes e ruinosas para o interesse nacional. E, por fim,
que Portugal não abdique de se bater em Bruxelas com as vozes que
reclamam uma mudança de políticas na zona euro, nomeadamente a
reestruturação da dívida, como, aliás, acaba de recomendar a ONU (apenas
com a oposição da Alemanha, do Reino Unido e dos EUA), ao aprovar os
nove princípios democráticos que “devem sobrepor-se à voracidade dos
credores”. Numa palavra, o que o PS deve exigir à Coligação é que ponha
”Portugal à frente”.
Este é o mínimo aceitável para que o PS não
volte a ser a muleta da direita, com o risco de descaracterização que os
partidos socialistas e sociais-democratas têm sofrido na Europa desde a
queda da URSS. Se a Coligação não aceitar o essencial destas
exigências, o PS deve propor-se formar governo com o apoio dos partidos à
sua esquerda, com o compromisso de se bater pela renegociação da
dívida, o fim das políticas de austeridade e a recuperação da soberania
nacional em áreas que não lhe podem ser retiradas por decreto. Isto
implica, também, da parte do PCP e do BE, um compromisso com a
realidade, sem abdicar dos seus legítimos apelos à mudança de paradigma
na política europeia.
Estamos num tempo histórico que oscila entre
os versos de Yeats e os de O’Neill. É preciso que os melhores, de que
fala o poeta irlandês, recuperem a “apaixonada intensidade” das suas
convicções, que, nestes últimos 30 anos abandonaram nas mãos de uma
direita revanchista e predadora.
Será desta vez, como pressentiu O’Neill, que “o nosso destino, tac, vai mudar?”
Realizador
IN "PÚBLICO"
12/10/15
.
Sem comentários:
Enviar um comentário