Eclipse global
Sempre que há um colapso nas Bolsas, como agora aconteceu na China e
se propagou globalmente, é inevitável recordar-me de O Eclipse, de
Michelangelo Antonioni, realizado há mais de meio século, em 1962. Não
conheço outro filme tão belo, tão sensível e também tão premonitório da
desordem (financeira, mas não só) do mundo contemporâneo.
E, no entanto, a globalização era então uma palavra
por inventar, estávamos muito longe do império da informática e da
internet, não existiam telemóveis e as inovações tecnológicas que
entretanto se massificaram ainda pairavam no segredo dos deuses.
A acção de O Eclipse decorre em Roma, num Verão quente e luminoso,
entre uma moderna periferia residencial preservada do bulício urbano e o
movimento efervescente da Bolsa, no centro histórico da cidade, onde se
faziam e desfaziam fortunas ao sabor dos caprichos inexplicáveis de uma
abstracção chamada dinheiro.
Apesar do ambiente quase provinciano da Bolsa romana - se pensarmos
em Wall Street ou noutras praças financeiras dos nossos dias -,
Antonioni captava a electricidade irracional dos comportamentos nesse
cenário, conjugando-a com as obsessões recorrentes na sua obra: a
alienação dos sentimentos num mundo esvaziado de sentido e a dificuldade
de comunicação entre os seres humanos - particularmente, a dificuldade
de amar.
Se, apesar da distância do tempo e das coisas, O Eclipse me parece
hoje um filme verdadeiramente profético é porque a sensação transmitida
por esse mundo esvaziado de sentido e mergulhado no absurdo se tornou
ainda mais premente do que há 50 anos.
A globalização tornou-se irreversível, inelutável, mas o optimismo
beato que suscitou na sua fase heróica vê-se cada vez mais confrontado
com uma face negra emergindo da caixa dos prodígios.
E quando constatamos que um país como a China, segunda maior economia
mundial, é o epicentro do terramoto financeiro ocorrido esta semana,
vemo-nos duplamente desafiados pela vertigem dos paradoxos e do absurdo a
que chegámos.
A China é governada por um partido único, de matriz assumidamente
comunista e totalitária, mas foi-se tornando ao longo das últimas
décadas a mais poderosa força motriz de um capitalismo selvagem e a
economia emergente com taxas de crescimento mais elevadas do mundo,
chegando a pôr em causa a tradicional supremacia americana.
Em vez de se ter verificado uma abertura democrática da sociedade,
preconizada pelos teóricos clássicos do casamento inevitável entre
capitalismo e democracia, o regime chinês fez prosperar uma oligarquia
corrupta cuja voracidade provocou um ainda maior endurecimento da
ditadura do Estado, em nome do combate a essa deriva.
Ora, foi a China que Portugal e outros países europeus - sobretudo
alguns mais afectados pela crise - elegeram para parcerias estratégicas e
venda de empresas, nomeadamente no sector público ou nas áreas da
energia, seguros e banca. As chamadas privatizações tiveram assim, por
irónico destino, alguns expoentes do capitalismo de Estado chinês…
Precisamente, entre os mais atingidos pelo sismo bolsista desta
semana estavam alguns dos nossos conhecidos parceiros chineses e um
candidato à compra do Novo Banco. Sem esquecer que, na última
segunda-feira negra, 3 mil milhões de euros se evaporaram da Bolsa de
Lisboa, com perdas de 1,6 mil milhões para a EDP, Galp e Jerónimo
Martins.
O crash da Bolsa de Xangai, contagiando as suas congéneres globais,
nada teve, porém, de verdadeiramente surpreendente, se tivermos em conta
a natureza e a dinâmica perversas do capitalismo chinês. Ninguém quis
ver que o milagre económico da China tinha pés de barro - e que, para
manter-se, precisava de taxas de crescimento estratosféricas acima dos 7
por cento, enquanto a Europa arrasta os pés para ultrapassar o
crescimento zero…
O FMI e o BCE bem tentaram pôr água na fervura, separando a febre
bolsista do estado de saúde da economia global. Mas essa é uma ilusão
perigosa: à custa de procurar evitar o pânico, fecham-se os olhos à
nudez crua da verdade que tenderá a impor-se por força da globalização.
Há um antes e um depois desta semana negra, que confirmou uma
vertigem anunciada desde o início do mês. É a voracidade do capitalismo
financeiro e especulativo que está em causa.
Não por acaso, o crash bolsista coincidiu com o agravamento da crise
migratória na Europa. O eclipse da consciência europeia, ao varrer para
debaixo do tapete um drama cada vez mais explosivo, é simétrico do
eclipse de um planeta financeiro desgovernado.
IN "SOL"
31/08/15
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