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A direita radical encontrou
o "fim da história"
e chama-lhe "realidade"
Os mercados não são o que são, são aquilo que o poder político lhes permite ser, pelo menos é assim que devia ser em democracia.
A direita mais radical descobriu recentemente uma filosofia da
história. Como os leitores mais simples de Fukuyama, aqueles que só
conhecem o nome e o título do livro, entendeu que se chegou ao “fim da
história” e o “fim da história” é aquilo a que chamam “realidade”. Uma
espécie de muro existente na física das sociedades e das nações contra o
qual se vai inevitavelmente quando se abandona o caminho da
“austeridade” e se encontra a TINA, o “there is no alternative”. Uma lei a modos que como a lei da gravidade.
Tudo é
espantoso nesta formulação, a começar pela sua profunda inanidade
intelectual, que sobe muito acima da sua sandália para ser apenas um
interpretação utilitária destinada a justificar o nosso “bom governo”, a
potenciar o sucesso eleitoral da coligação PSD-CDS e a manter o actual status quo
europeu de que faz parte. Tenho consciência de que, ao tratar estas
ideias, muito nano-ideias, com a dignidade de serem uma filosofia da
história lhes faço um favor, mas é o que eles pensam que são. Tenho
também consciência de que invocar Fukuyama também é insultuoso para o
dito, tanto mais que o que ele escreveu é bastante mais complexo e
interessante do que as simplificações de que foi vítima. Mas as coisas
são o que são e a ideologia da TINA é mesmo próxima daquilo que é a
interpretação vulgar do “fim da história”: chegou-se a um estado ideal
da sociedade e da política, que não pode ser contestado porque ele é um terminus, vedado pela “realidade” de que não há saída. Querem coisa mais poderosa do que a “realidade”? Estou esmagado.
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O que é a “realidade” para a qual “não há alternativa”?
Em
primeiro lugar, é o que há, o que existe, e a ideia de que o “que
existe tem muita força” e legitima-se por existir. Neste pensamento do
TINA existe uma espécie de congelamento da história, ? o que se
compreende visto que chegou ao “fim”, ? no actual momento europeu, visto
que é uma doutrina essencialmente europeia. Não é global, nem
americana, nem dos BRICs, nem asiática, vem da Europa e fixa-se na
Europa. Mais: fixa-se no estado de coisas europeu dos últimos anos, nem
sequer uma década, desde a crise financeira (real) seguida da crise das
dívidas soberanas (politicamente gerada). Manifestou-se na conjugação
entre resultados eleitorais que deram maiorias a governos de direita,
deslocaram os partidos e os governos para direitas mais radicais
(visível na economia, mas também no tratamento da emigração, na deriva
securitária, etc.), e permitiram uma captura da política pelo sistema
financeiro, ou seja pelos mercados. Os mercados não são o que são, são
aquilo que o poder político lhes permite ser, pelo menos é assim que
devia ser em democracia.
A União Europeia, cada vez menos
democrática no topo e na base, forneceu a esta conjuntura um instrumento
quer de unificação e ampliação de políticas, quer de controlo político
sobre os recalcitrantes. O “europeísmo” ideológico, em refluxo de caução
democrática nacional e sobrepondo-se, muito para além dos Tratados, aos
parlamentos e à soberania, teve um papel fundamental em conseguir a
subordinação dos socialistas a essa direita. Esta subjugação foi
materializada, entre outras coisas, pelo Tratado Orçamental que lhes
impõe uma visão da economia, da sociedade e do estado que historicamente
nunca foi sua. A isto somou-se uma interpretação retrospectiva da
história, encontrando um nexo causal que demoniza certas políticas e
legitima outras. Viveu-se e vive-se um momento áureo de um historicismo
vulgar associado à perda de memória acentuada no universo mediático e
das redes sociais.
Com a proibição de qualquer veleidade
keynesiana pelo Tratado, os socialistas perderam autonomia e sofreram
derrotas sobre derrotas, mesmo quando “ganharam” como Hollande, porque
entre uma imitação e a “real thing” os eleitores preferem a
“realidade”. O preço desta quebra da “alternativa” foi a crise
preocupante de representação nas democracias europeias, o crescimento da
abstenção, o afastamento dos partidos no poder da população, e o
crescimento à esquerda e à direita de partidos e movimentos
anti-europeus e anti-sistema. Na “realidade” paga-se sempre o preço da
realidade.
Em segundo lugar, existe uma enorme confusão entre a
“realidade” do “fim da história” e o poder. Aquilo que os gregos
encontraram à sua frente não foi o muro da “realidade”, foi o muro do
poder. O poder no sentido weberiano, a possibilidade de alguém obrigar
outrem a proceder contra a sua vontade. Uma das grandes aquisições da
crise grega para a consciência europeia, foi a revelação às claras, sem
ambiguidade, sem disfarces, da brutalidade do exercício de um poder. Nos
nossos dias isto não é desejado pelos poderosos, que gostam de
disfarçar o seu poder na discrição e no segredo, onde ele é sempre
maior. Ao revelar o poder, enfraqueceu-o. Dos alemães aos parceiros
menores como Passos Coelho, saber-se o que fizeram, saber-se o que
impediram e vetaram, saber-se o que disseram, nas portas fechadas do
Eurogrupo, e perceber-se que o resultado foi uma imposição punitiva de
uma política em que ninguém acredita a um governo e a um povo, cria uma
situação sem retorno.
As manobras de diversão dos dias de hoje, de
Juncker a Hollande, são tentativas ou de diminuir as culpas ou de criar
cortinas de fumo para não se ver o ultimato e a humilhação em que
participaram sob a batuta alemã. Será que os partidários da “realidade”
acham que os gregos vergados a um programa que todos sabem que não
resulta, até Schäuble o diz, podem ser descritos como tendo sido
obrigados a aceitar a “realidade”? Não, foram obrigados a vergarem-se ao
poder. É por isso que a doutrina da “realidade” é uma justificação do
poder exercido pela força. É por isso que a TINA é uma doutrina de
submissão, uma espécie de justificação do direito natural dos poderosos a
exercerem o poder sem limites. Como é que podia ser de outra maneira
“se não há alternativa”?
Em terceiro lugar, para a “realidade” ser
a da TINA, tem que se excluir dessa realidade tudo que a atrapalhe. Em
termos europeus e em termos portugueses, isto inclui dois tipos de
questões: as chamadas “sociais” e as que geram dúvidas sobre a moral da
“realidade”. Comecemos pelas últimas. Ouviram algum genuíno protesto dos
partidários da “realidade” com as fugas de capital na Grécia? Não, são
normais, é a “economia empreendedora” a fugir para o exílio desde que os
comunistas do Syriza ocuparam o poder.
Fraudes bancárias, corrupção, fuga de capitais, paraísos fiscais, práticas de dumping fiscal, “planeamento fiscal”, fuga aos impostos dos ricos, offshores,
falências fraudulentas, etc., etc são sempre ou desculpabilizados, ou
silenciados ou minimizados. Podem perguntar ao senhor Juncker sobre o
que fez no Luxemburgo, mas o senhor Juncker foi escolhido por Merkel,
Rajoy e Passos para ser um presidente fraco da União.
Também não
cabem na “realidade” as questões sociais. Pobreza, desemprego,
empobrecimento, disfunções sociais várias, desagregação dos serviços
públicos usados pelos mais necessitados, inversão do elevador social,
refugiados, emigração económica, exclusão social, aumento das
desigualdades, etc., só aparecem como “danos colaterais” no discurso dos
próceres da “realidade”, ou então, temos a certeza de que estamos em
campanha eleitoral. A política da “realidade” tem apenas como actores os
empresários, e mesmo assim apenas os que fazem parte do lado fashionable da economia, falam de uma economia sem trabalhadores e de um povo que não existe.
Isso
é porque a “realidade” é um resultado de um feixe de interesses, hoje
muito mais acossado do que esteve no passado recente, logo mais
agressivo. O modo como trataram a questão grega é um exemplo de uma
enorme cegueira, que se podia quase dizer bem-vinda cegueira se não
fosse o custo que tem para os gregos. Que eles caminhem de mão dada
ceguinhos para o precipício, não acho mal, mas vão sozinhos.
É
que, contrariamente ao que pensam, na questão grega, a realidade
impôs-se à “realidade” e fez a história mover-se quando eles a queriam
fixa no ponto ideal do seu poder. Sem eles as verem, a não ser na sua
agenda punitiva, as coisas estão a mudar e como sempre acontece na
história mudam sob a forma de surpresas. Não, a “realidade” não é a
história acabada num certo modelo de economia, sociedade e poder. Bem
pelo contrário, está a mover-se e mais depressa do que imaginam e não é
para o lado da “realidade”. É para o lado de que há “alternativas”.
IN "PÚBLICO"
25/07/15
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