HOJE NO
"OBSERVADOR"
Sabe porque muda a hora?
Esta história tem barbas
Atrasar ou adiantar os ponteiros do relógio 60 minutos não parece ser
complicado. Será que uma medida implementada em 1916 para poupar carvão
ainda faz sentido?
A pergunta é só esta: sabe porque muda a hora duas vezes por ano? Os
mais afoitos dirão que será para os caracóis e a cerveja saberem melhor
depois de uma ida à praia, com o sol ainda a piscar o olho enquanto a
noite, impotente, tenta impor-se. É sempre a mesma cantiga: o relógio
anda para a frente ou para trás? Os que têm jogos ao domingo de manhã ou
aqueles com outros compromissos mais parecem o Dr. House a esmiuçar
todas as informações sobre o assunto e a tratar do relógio como se fosse
um paciente. Este domingo, dia 29, muda a hora. É só adiantar os
ponteiros 60 minutos, senhoras e senhores.
Mas esta história tem
muito que se lhe diga. Estamos em 2015, certo? O homem foi à lua,
existem iPads, GPS, podemos pagar contas à distância de um clique, os
carros andam sozinhos, existem drones, estamos a seis, sete pessoas de
qualquer outro ser humano deste planeta. O mundo ficou mais pequeno, e
segue galopante. Mas esta decisão de trocar as voltas aos ponteiros do
relógio remonta a 1916. Mil e novecentos e dezasseis. Para quê? Poupar
energia. O nome oficial é “Daylight Savings Time” (DST). Foi pensado
para poupar velas (1784), protagonista das duas Grandes Guerras, foi
apoiado numa fase inicial por Winston Churchill e motivo de chacota em
Espanha. Acabaria por ser recuperado depois da crise do petróleo de 1973
e por transformar-se em diretiva europeia em 1981.
Estamos em 2015, certo? Existem lâmpadas de baixo consumo, os
computadores estão ligados o dia todo, seja para trabalhar ou para ver
Homeland, House of Cards ou Downton Abbey; existe o ar condicionado, as
empresas laboram a todas as horas. Estamos sempre ligados à corrente. Os
tempos mudaram. Em 1916, um dos grandes hits musicais foi
“Somewhere a voice is callin”, de John McCormack. No mesmo ano, o
Benfica discutiu o Campeonato da capital com o Lisboa FC (Campo Grande) e
nasceu Walter Cronkite (1916-2009), o importante jornalista que se emocionou
a anunciar o assassinato de Kennedy. Fará sentido, hoje em dia, uma
medida implementada durante a Primeira Guerra Mundial para poupar
carvão? É o que vamos ver…
Vamos por partes. Quem teve a ideia?
Um dos homens mais importantes da história dos Estados Unidos: Benjamin
Franklin. O norte-americano escreveu um artigo — “Economical Project
for Diminishing the Cost of Light” — para o Journal de Paris, em 1784,
no qual dissertou sobre a importância de mudar a hora com vista a
poupanças. Mas a ideia só andou para a frente graças a um londrino —
William Willett –, que, no entanto, não conseguiu convencer
os governantes do país com o panfleto “The Waste of Daylight”, em 1907. O
jovem Winston Churchill apoiou a teoria, mas ela não chegou ser
aprovada.
A Primeira Guerra Mundial estalou pouco depois. A Alemanha e o império Austro-Húngaro abraçaram a ideia de Willett.
O Reino Unido e a França anunciaram poucos dias depois a mesma decisão.
Willett, que só queria mais luz solar pela manhã para continuar a
colecionar insetos, havia morrido no ano anterior e não viu o horário de
verão ser implementado. Em 1917 foi a vez da Rússia e dos Estados
Unidos. Ironicamente, a guerra que desuniu o mundo juntou-os neste
capítulo.
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A família real espanhola só adotou o novo horário em 1918, quando a
guerra estava a chegar ao fim. Muitas fábricas estavam a fechar, faltava
matéria-prima, havia escassez de algodão e de trigo para fazer pão.
Poupar passou a ser uma forma de estar, e lá foi decidido que os
relógios seriam adiantados uma hora no dia 15 de abril. A imprensa não
resistiu e gozou com a situação, principalmente com os problemas que se
adivinhavam para os proprietários dos relógios de sol. Pelas ruas,
nomeadamente em Barcelona, começaram a ver-se avisos sobre a nova
situação. Era uma nova realidade. Na rua, quando alguém perguntava as
horas a outro ouvia muitas vezes “a oficial ou a outra?”
Quando
terminou a guerra houve quem abandonasse o tal horário de verão. A
Segunda Guerra Mundial trouxe-o de volta, mas voltaria a cair em várias
zonas do globo. Era como um carrossel que andava ao sabor dos conflitos
bélicos, que tanto esmifraram as pessoas e os recursos dos países.
Esta prática generalizou-se a diferentes ritmos a partir de 1974,
quando os Estados Unidos e Europa viram os países árabes roubarem-lhes o
chão, ao fechar a torneira do ouro negro. A crise energética de 1973 colocou o ambientalismo no mapa e no top of mind dos
políticos. Os Estados Unidos, por exemplo, para enfrentar o problema,
racionalizaram gasolina, impuseram um limite de velocidade nas estradas
e, como tantos outros, adotaram o tal Daylight Saving Time. Para quê?
Poupar, como acontecera em 1916. A organização árabe para a exportação
de petróleo levantaria o embargo em março de 1974.
DAYLIGHT SAVING TIME: BOM OU MAU?
Há estudos para todos os gostos. Uns dizem que existe apenas uma
poupança de energia de 1%, outros falam até 10%. Depois há aqueles que
sugerem que há menos acidentes no trânsito e que o crime diminui. As
consequências na saúde também são esmiuçadas. A Universidade do Alabama
descobriu, em 2012, que há um aumento de 10% de ataques cardíacos na
segunda e terça-feira após avanço da hora. Já quando se atrasa a hora,
no outono, não foi registada qualquer oscilação nos números referentes a
ataques de coração.
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Consumos relativos a segundas-feiras consecutivas, antes e depois da mudança de hora (verão-inverno 2013) - Dados da REN |
Os mais afetados serão as crianças, diz a
revista brasileira Crescer. Embora pareça pouco tempo, o da adaptação,
os mais pequenos podem ficar mais preguiçosos na semana seguinte. O
relógio biológico é mais lento e exige habituação. Tudo porque a
melatonina, a hormona produzida pela glândula pineal que participa na
regulação dos ritmos biológicos, é ativada e alterada pela falta de luz,
provocando instabilidade na rotina. Há todo um repertório de sintomas
que estão intimamente ligados a esta adaptação: mau humor, cansaço,
falta de apetite e preguiça. “Não se deve dormir durante o dia para
compensar a noite mal dormida”, explicou Leonardo Ireradi, um
neurologista de um hospital de São Paulo.
Existem alguns truques
para tornar menos brusca esta cambalhota na rotina. Antecipar a mudança
do horário, para se habituar aos poucos, e evitar alimentos pesados e
estimulantes são um bom princípio. Mas nem tudo é mau, pois um estudo —
sim, mais um — mostrou que no horário de verão pais e filhos passam mais
tempo juntos, e ao ar livre.
“Não sabia porque mudavam a hora, nem nunca me passou pela cabeça o
porquê”, começou por dizer Alexandra Esteves, de 30 anos, ao Observador.
“Claro que me causa transtornos. Fico mais cansada, custa sair da cama e
os dias parecem intermináveis. Mas penso que isso também se deve ao
frio e à ideia de inverno. É só durante a primeira semana, depois
adapto-me.”
Já Jorge Tavares, de 25 anos, considera que faz
sentido as horas estarem de acordo com a luminosidade. “A minha grande
preocupação quando era mais novo era ter jogos sempre ao domingo de
manhã, então não me podia descuidar. Não me afeta nada, e só muda uma
noite, depois as pessoas adaptam-se. É como um mini-jet lag. Quando fores viver para a Austrália não te vais andar a queixar da diferença horária durante meses”, explicou.
E
lá justificou: “Acho que faz sentido as horas estarem de acordo com a
luminosidade. Acordar a uma hora normal e ser de noite é parvo, como
também é estúpido já teres jantado e ainda ser de dia. Não é estúpido,
mas há uma razão para dizer sete da tarde e oito da noite…”
João
Duarte Silva, de 28 anos, é favorável às mudanças horárias. “Há prós e
contras nesta questão”, começou por dizer. “Por um lado é desagradável
ver a noite a chegar às seis da tarde — até antes nos meses de novembro e
dezembro –, mas por outro lado o dia começa mais cedo, o que traz
vantagens a muitas industrias. E não só. Para o trabalhador comum, sabe
bem sair da cama com o sol a nascer nos dias de inverno. Se a hora não
mudasse, sairíamos da cama de noite nos dias mais frios do ano, o que
seria uma chatice”. O argumento está ao nível do que exaltaram outrora
Franklin e Willett. “No geral, eu concordo com a hora de inverno. Julgo
ser o melhor caminho para a produtividade” rematou Duarte Silva.
João Pedro, de 23 anos, diz-se um romântico das compras natalícias
pela noite. “Hoje em dia faz sentido nem que seja só por uma questão de
tradição. É difícil imaginar a aproximação ao natal com o horário de
verão. Mesmo comercialmente afeta, porque se saíres do trabalho ainda de
dia não te apetece tanto fazer compras de natal. A noite puxa mais a
isso, com as iluminações e tal, mas se calhar isto é só uma ideia
romântica minha…”
Não abundam os estudos sobre a temática em Portugal, por isso abordemos um de 2007, elaborado pela Netsonda,
a pedido da Philips. Mais de 75% dos portugueses — falamos apenas de
uma amostra de 885 pessoas, entre os 18 e 55 anos — concorda com a
mudança de hora como medida positiva ambiental de poupança de energia,
embora a mesma afecte negativamente um terço deles, pode ler-se no
relatório. Os inquiridos queixaram-se de que a mudança de hora oferece
alguns efeitos negativos: alterações do sono, irritabilidade, mau humor,
sonolência e cansaço. São necessários três dias em média para as
pessoas se habituarem à ideia.
UNIÃO EUROPEIA: ESTÁ TUDO BEM
A União Europeia também já se debruçou sobre este assunto, através de um relatório da Comissão das Comunidades Europeias,
de novembro de 2007. A diretiva que fixou uma data comum única para o
início do período de verão entrou em vigor em 1981. Como já vimos em
cima, a maioria dos Estados-membros introduziu a Daylight Saving Time
nos anos 70, após a crise do petróleo.
Mais recentemente, em 19 de
janeiro de 2001, o Conselho e o Parlamento Europeu adotaram
conjuntamente a diretiva respeitante à hora de verão. O artigo 5.º da
diretiva previa que a Comissão apresente ao Parlamento Europeu, ao
Conselho e ao Comité Económico e Social um relatório sobre a incidência
das disposições da diretiva nos setores relevantes. O artigo 5.º prevê
igualmente que o relatório seja elaborado com base nas informações
comunicadas à Comissão por cada Estado-Membro. Aconteceu em 2007.
E quais são as conclusões desse
relatório? Está tudo bem e não há motivos para mudanças. Deixamos aqui a
lista das conclusões, que tiveram em conta as muitas vicissitudes dos
setores mais importantes, assim com questões relacionadas com lazer,
saúde e ambiente.
— Mais de 20 anos após a adoção da primeira
diretiva sobre esta matéria, os setores económicos considerados mais
relevantes, nomeadamente a agricultura, o turismo e os transportes,
integraram a hora de verão nas suas atividades e não põem a sua
existência em causa.
— No que diz respeito aos transportes, a plena harmonização do calendário permitiu suprimir os obstáculos mais importantes observados no passado.
—
A hora de verão favorece a prática, ao fim do dia, de todas as espécies
de atividades de lazer em condições de maior conforto, dado se
realizarem com luz natural.
— Face a estudos contraditórios sobre esta matéria, é impossível tirar conclusões válidas
sobre o impacto ambiental da hora de verão. Esta constatação aplica-se,
em especial, à questão de determinar se a hora de verão resulta num
aumento ou numa redução da produção de ozono, em comparação com uma
situação sem mudança horária.
— A hora de verão contribui para uma poupança de energia pelo facto de se utilizar menos eletricidade em iluminação ao fim do dia, visto haver mais luz natural. No entanto,
desta poupança é necessário deduzir o maior consumo de energia devido à
necessidade de aquecimento de manhã, quando da mudança horária, e o
consumo de combustível suplementar gerado pelo possível aumento do
tráfego ao fim do dia quando há mais luz natural. Além disso, as
poupanças efetivamente obtidas são difíceis de determinar e, de qualquer
modo, são relativamente limitadas.
— A maior parte dos possíveis
efeitos da hora de verão na saúde está ligada ao facto de o corpo humano
ter de se adaptar à mudança de hora em abril e outubro. A esse respeito
e no estado atual da investigação e dos conhecimentos, os especialistas
estão de acordo que a maior parte das perturbações sentidas são de
curta duração e não põem em perigo a saúde.
— No que diz respeito à segurança rodoviária, a questão é determinar se as manhãs com menos luz natural, nomeadamente na primavera e no outono, e as noites com mais
luz natural têm um impacto no número de acidentes de automóvel. A
ausência de dados quantitativos suficientes, bem como a interação com
outros fatores como as condições meteorológicas, não permite estabelecer
com segurança uma relação de causalidade entre a hora de verão e o
número de acidentes.
Segundo o mesmo relatório, nenhum
Estado-membro solicitou a modificação do atual regime. Pelo contrário,
sublinharam a importância da harmonização do calendário da hora de verão
na União Europeia, lembrando a questão dos transportes. Só a Bélgica
apelou a que, caso houvesse mudanças, que se passasse a usar sempre o
horário de verão. Quanto ao turismo, a Letónia, por exemplo, afirmou que
a hora de verão tem um impacto positivo. Já a Itália referiu então que
os setores da construção e agricultura saem beneficiados com a hora de
verão, nomeadamente no sul do país, que sentem menos calor de manhã.
E
a lengalenga que nos trouxe até aqui? Quanto ao consumo de energia,
Bulgária e França falaram numa oscilação de 0,01% e 0,014%,
respetivamente. Irrisório, portanto. Na Eslovénia e Letónia não houve
mudanças significativas, ao contrário do que aconteceu na Estónia, que
assinou uma oscilação de menos de 10%, que ainda assim é significativa.
“Para além do facto de favorecer a prática de todas as espécies de atividades de lazer ao fim
do dia e de permitir alguma poupança de energia, a hora de verão tem poucos impactos e o
regime atual não constitui um assunto de preocupação nos Estados-membros
da UE”, começa por dizer a conclusão do relatório. “Nesta perspetiva, a
Comissão considera que o regime de hora de verão tal como estabelecido
na diretiva continua a ser adequado. Nenhum Estado-Membro mostrou
vontade de abandonar a hora de verão ou modificar as disposições da
atual diretiva. Em contrapartida, importa manter a harmonização do
calendário a fim de assegurar o bom funcionamento do mercado interno,
que é o objetivo essencial da diretiva.”
ESTADOS UNIDOS DIZ ADEUS AO HORÁRIO DE VERÃO?
Em 2011 eram 110 os países que mudavam a hora duas vezes por ano. Só
havia uma exceção na Europa: Islândia. Os russos preferiram não adotar
também o DST porque estudos terão concluído que a hora de inverno
deixava o povo deprimido, contribuindo para um aumento da taxa de
suicídios. Dmitri Medveded, o então presidente russo, afirmou no início
de 2011 que o país viveria sempre no horário de verão.
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Já os Estados Unidos começam a perder o encanto com esta medida que adotaram primeiramente em 1917, contou o Washington Post, a 17 de outubro. Os estados do Arizona e Havai não mudam os ponteiros do relógio durante o ano. Mas a shortlist
poderá não ficar por aqui. O Utah poderá ir pelo mesmo caminho, pelo
menos é o que propõe o deputado Lee Perry e o Senador Aaron Osmand. Os
dois legisladores querem acabar com o Daylight Saving Time ou organizar
um referendo. Segundo Perry, 62% de 30 mil inquiridos querem derrubar a
atual modalidade.
“Isto diz-me que é um assunto que as pessoas
querem resolver. Conheço pais frustrados porque os filhos vão para a
escola de noite”, explicou Lee Perry. O deputado estadual disse ainda
que os estados do Colorado, Idaho, Montana e Wyoming estão a refletir
sobre o mesmo cenário. O Daylight Saving Time foi implementado no
Arizona em 1918, mas teve “stop” em 1968. O Havai nunca participou.
Estamos
em 2015, certo? Sim, e se calhar até faz sentido continuarmos a ter o
Daylight Saving Time, mas não pelas razões que abraçaram a génese do
“projeto” — poupar energia. Se os principais setores da economia não se
queixam, talvez não haja drama nenhum.
* Uma história bem contada!
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