20/03/2015

ANA SOUSA DIAS

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Onde estão os óculos 
azuis e vermelhos?

Estou preocupada porque ainda não começou a venda desenfreada de óculos azuis e vermelhos para poder olhar com segurança o eclipse de sexta-feira, quando a Lua se atrever a colocar-se entre nós e o Sol para por uns minutos conseguir ofuscá-lo. Tenho pena, como sempre nestas situações, de não estar a jeito para poder espantar-me com aquele jogo de escondidas, visível para os lados do Polo Norte.

Quando era pequena, li muitos livros de Júlio Verne, daquelas edições encadernadas com ilustrações de fazer sonhar. Estavam já tão manuseados que algumas folhas se soltavam, amarelecidas e com um cheiro peculiar. Num aniversário, recebi de um tio, grande leitor, um exemplar mais moderno, sem a encadernação de tecido a que estava habituada. Era O Raio Verde e li-o de seguida, mas fiquei um pouco desolada. A história parte de um triângulo amoroso, quer dizer, tem no centro uma jovem casadoira com dois pretendentes. Um deles é imposto pela família e tem um nome que se está mesmo a ver que não dá para provocar qualquer paixão: Aristobulus Ursiclos. O outro chama-se Oliver (Oliveiros, na minha edição Bertrand) Sinclair, e é óbvio que à partida tem a vantagem da nomenclatura. Pressionada para se casar quando completa 18 anos, miss Helen Campbell - o caso passa-se na Escócia, daí o miss em vez de mademoiselle - inventa um capricho: primeiro tem de ver o raio verde. Tal como o eclipse que nos vai animar depois de amanhã, o raio verde é um fenómeno natural e raro. Não precisa de óculos às cores mas exige condições atmosféricas especiais e que o espectador esteja no sítio certo. A bordo do Clorinda partem todos à procura do raio que se vai fazendo difícil: só aparece, magnífico e definitivo, na página 176. A decisão amorosa é tomada como deve ser: o livro tem um fim feliz e mais não digo.

Ora o que então me desolou naquele tempo foi não fazer a mais pequena ideia do que seria o dito raio, mas sobretudo ler uma história romântica em vez de um livro de aventuras como a Viagem ao Centro da Terra ou A Volta ao Mundo em 80 Dias. Numa daquelas relações de ideias orientadas por sinapses bizarras e pormenores vários, pensei no raio verde a propósito do eclipse. É hoje muito fácil descodificar estas coisas, basta pesquisar na internet. Pelo sim pelo não, tenho o livro ao meu lado para verificar pormenores. Percebi agora o que é o raio verde e aproveitei para ler muita coisa sobre Jules Verne, um Júlio como dizíamos naquele tempo em que se traduzia nomes a torto e a direito.

Às voltas nas estantes, encontro agora uns óculos para ver gravuras a três dimensões, num livro antigo com fotos de cores desfasadas, mas têm a lente verde em vez de azul. Será que posso usá-los para ver o eclipse?

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
18/03/15


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