A Europa
no espelho grego
Enquanto na Ucrânia se confirmava o fracasso, aliás totalmente
previsível, do segundo acordo de Minsk, apesar das noites em branco de
Merkel e Hollande e do seu diálogo (de surdos, conforme se antevia) com o
imperturbável Putin, outro confronto menos bélico mas igualmente
perigoso mantinha-se em aberto entre o Governo grego e a Europa alemã. É
uma concentração explosiva de conflitos, cujos efeitos cruzados ameaçam
esfrangalhar o que ainda resta da unidade e credibilidade europeias.
Para complicar as coisas, seria difícil imaginar um contraste mais
teatral - sendo a política, como se sabe, uma réplica do teatro - entre
os dois protagonistas do duelo greco-alemão (sem esquecer os outros
europeus que ainda obedecem, veneradores ou obrigados, aos ditames
germânicos).
Duas personagens, dois actores, radicalmente opostos nos modos de ser
e estar em cena - e, por isso, incapazes de disfarçar uma visceral
antipatia e rejeição mútuas. Pode dizer-se até que nasceram para
detestar-se… Só falta um dramaturgo talentoso para escrever a peça.
Num lado do palco, um típico pai severo e castigador - um verdadeiro
père fouettard, como dizem os franceses -, o convencionalíssimo,
professoral e inflexível Wolfgang Schäuble, ministro das Finanças de
Berlim, absolutamente convicto das virtudes indiscutíveis da ortodoxia
financeira que representa. Ainda por cima, impõe deferência e respeito
devido à sua condição de paraplégico.
No outro lado, o seu rebelde interlocutor grego, Yanis Varoufakis,
nova coqueluche dos media internacionais, trouble fête desengravatado,
camisa fora das calças e blusão de cabedal, exibindo um dialecto muito
pouco diplomático, mas que não esconde os seus títulos académicos, a sua
expertise na teoria dos jogos ou o seu trajecto de “marxista errático”.
É edificante verificar como estas duas personagens têm concentrado grande parte das paixões políticas recentes.
Há mesmo quem considere que o sr. Schäuble não passa de uma versão
suave de neonazi, apesar do horror que ele próprio sentirá contra a
memória de Hitler. Mas a obsessão da superioridade da boa-consciência
germânica é algo que efectivamente atravessa os seus discursos e estados
de alma, a sua desconfiança sobre o carácter ocioso dos povos do Sul,
habituados a viver à custa da suposta generosidade dos trabalhadores da
Europa do Norte - e, sobretudo, da Alemanha.
Não foi por acaso que, perante a intolerável rebeldia do eleitorado
grego, Schäuble não conteve o seu paternalismo escandalizado: “Tenho
pena dos cidadãos gregos. Elegeram um Governo que, de momento, se
comporta de uma forma bastante irresponsável”.
Se Schäuble suscita uma hostilidade que se confunde com os
estereótipos mais anedóticos sobre a associação da Alemanha à herança
nazi, Varoufakis é alvo de simétricas acusações caricaturais sobre o seu
estilo de vestuário ou comportamento e o seu cabotinismo exacerbado de
rufia mediterrânico pós-moderno.
Ora, tudo isto seria simplesmente ridículo se não se tivesse tornado
um dos temas em foco da crónica política portuguesa, sobretudo entre a
chamada direita bem pensante. Aí, o centro das atenções é, naturalmente,
o insuportável Syriza, cujas veleidades têm de ser exemplarmente
punidas, custe o que custar.
Os estereótipos folclóricos substituem a reflexão sobre o que
efectivamente está hoje em jogo no continente europeu. Não se discute,
por exemplo, se o dogma da austeridade não tem sido um dos factores de
enfraquecimento, dissolução e perda da coesão da Europa ou da alarmante
vulnerabilidade aos perigos que a espreitam nas suas fronteiras Leste (a
Ucrânia) e Sul (com o terrorismo islâmico e a catástrofe humanitária do
êxodo de refugiados).
Os recentes atentados terroristas em países como a França e a
Dinamarca mostraram até que ponto a Europa corre o risco de converter-se
numa fortaleza assediada pela insegurança, o medo e a xenofobia. Um
mundo fechado e cada vez mais exposto ao ensimesmamento nacionalista,
extremista e anti-europeu, representado por forças como a Frente
Nacional francesa ou seus equivalentes nórdicos, holandês, germânico e
britânico.
Mas aí voltamos de novo à Grécia, se acaso fracassar definitivamente
uma solução de compromisso entre Atenas e as capitais europeias,
empurrando os gregos para os braços de toda uma sorte de alianças
nefastas - de que a Rússia de Putin é apenas um dos exemplos. No fim
desesperado da linha, estará ainda um triunfo dos neonazis, o terceiro
partido mais votado nas últimas eleições.
A Europa vê-se reflectida no espelho da Grécia, um reflexo que poderá
ser trágico para todos se a inteligência e a sensatez dos compromissos
não prevalecer sobre uma mútua cegueira suicidária.
IN "SOL"
23/02/15
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