Locais infectos
De que alfurjas,
bueiros, cavernas sulfurosas, loca infecta, saíram estas legiões de
comentadores, articulistas, jornalistas, escreventes, gente dos blogues,
que passaram o dia das eleições gregas a pedir mais austeridade
punitiva para os gregos, mais desemprego, mais pobreza e miséria, mais
impostos, menos salários e serviços públicos, como retaliação e vingança
por terem tido o topete de votar no Syriza? Ai quiseram livrar-se da
austeridade, pois preparem-se para levar com o dobro, para não se porem
com ideias! Os insultos a um dos povos mais martirizados da Europa –
martírio sem resultados, como todos podem perceber – sucederam-se: não
querem trabalhar, querem viver à custa de empréstimos que não têm
intenção de pagar, pior do piorio, mentirosos, falsificadores de contas,
enganadores de alemães, violentos, mal-agradecidos, tudo.
Ouvindo estas vozes, exigindo que a única política europeia seja
"levar o Syriza à derrota" para evitar o contágio, sem transigências e
com toda a dureza, eu penso como nestes últimos anos nós não tivemos só
discussões políticas e ideológicas (poucas aliás, a sério), alimentámos o
mal. O mal. Nalguns sítios da nossa sociedade gerámos, alimentámos,
engordámos, trouxemos à luz do dia gente má, muito má, que mandou e
manda em nós, instilando arrogância, desprezo pelos mais fracos,
insensibilidade face à miséria, gente que olha os gregos como se fossem
untermenschen. Do alto do seu conforto, sim porque o conforto
distingue-os da ralé, eles andam a passear-se nestes dias com uma enorme
espinha na garganta, mais do tamanho de uma trave do que de uma
espinha, e não gostam. Obrigado aos gregos por terem ensinado aos
maldosos que a sua impunidade tem limites.
O fim do bloqueio europeu
Um dos resultados mais positivos das eleições gregas é terem acabado
com o bloqueio que as políticas da "inevitabilidade" traziam à Europa. O
isolamento alemão (e português) é maior, e todos os outros países têm
hoje razões e obrigações de mitigar, moderar e mesmo, num certo sentido,
acabar com a hegemonia alemã das políticas de austeridade. A decisão e o
maior protagonismo do Banco Central Europeu já abria caminho para essa
inversão. Draghi não se limitou a propor uma medida "técnica" contra a
inflação negativa, mas explicou preto no branco que as políticas
anteriores tinham dado mau resultado e propôs-se aplicar uma medida que
classificou de "expansionista". Não admira que Passos Coelho não tenha
gostado, as suas declarações, inequívocas neste caso, consideravam estas
políticas como "erros".
Mas o soçobrar do bloqueio da "inevitabilidade" (aquilo que mais
dói aos detractores das eleições gregas) vai tornar mesmo governantes
fracos como Hollande, um obstáculo para o curso punitivo que Merkel,
Rajoy e Passos desejariam "para derrotar um governo do Syriza". Eu não
tenho nenhuma especial simpatia por Hollande, mas não o estou a ver a
assinar de cruz medidas punitivas contra os gregos e, sem a França, a
hegemonia alemã enfraquece muito. É isso que significa o desfazer do
bloqueio: há hoje alternativas políticas que seriam impensáveis há seis
meses. Obrigado aos gregos por terem permitido a possibilidade de uma
melhor Europa.
Não vai ser fácil
Todos sabemos que o caminho dos gregos não é fácil. Sabemos, a
começar pelos gregos, que enormes dificuldades vão estar pela frente.
Mas pela primeira vez depois destes anos de lixo, foram eles próprios
que escolheram o caminho das pedras que queriam trilhar e não os alemães
e os burocratas europeus. Faz uma enorme, gigantesca diferença, este
assumir de dignidade nacional para um país que foi humilhado como
poucos.
E é uma bofetada de luva branca para muitos que enchem a boca com
a "Pátria", para depois a descreverem como um "protectorado", que
aceitaram com aplauso abdicar de todos os traços da nossa soberania, e
transformarem Portugal num vassalo obediente, muito além do que seria
razoável pelas nossa atribulações financeiras, que tenha sido um partido
que descrevem com desprezo como de "extrema-esquerda", que restituiu à
Grécia a honra perdida.
Sim, porque na vitória do Syriza o conteúdo do seu programa foi o
que menos contou, mas a afirmação da independência e da soberania de um
povo que não esqueceu as violências que os alemães fizeram na Segunda
Guerra Mundial, e os insultos à Grécia na última década, e a vontade de
varrer a elite política nacional corrupta que foi o seu instrumento. Uma
vitória destas não se obtém sem ser pelo contra, por aquilo que os
gregos não queriam. Depois virá o resto. Obrigado aos gregos por nos
terem ensinado que em tempos de lixo o que verdadeiramente mobiliza a
mudança é o que não se deseja, e só depois de se ter atirado borda fora
esse lastro é que se pode começar a falar outra língua.
Afinal os gregos não fazem tudo mal
Portugueses, aprendam com os gregos! Eleições no domingo, coligação
durante a noite, governo na tarde do dia seguinte. Obrigado aos gregos
por nos darem lições de eficácia.
IN "SÁBADO"
30/01/15
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