Boas todos os dias
Lembro-me
muito bem do meu primeiro piropo de rua. Lembro-me do sítio, do tom de
voz, do olhar. Tinha uns 12 anos, vinha do liceu e um homem com idade
para ser meu avô disse, quase ao meu ouvido: "Lambia-te toda."
Lamento,
mas alguém tem de recentrar a discussão. E não se diga que dizer tal a
uma criança "já é crime": quantos condenados ou sequer julgados pelo
crime de dizer ordinarices a meninas na rua conhecem? Quantas vítimas
deste crime vieram a público queixar-se, ou os pais por elas? É porque
são poucas, aventar-se-á. Não. Numa reportagem de setembro de 2013 sobre
o assunto, todas as jovens e menos jovens - com quem falei relataram
casos iguais. Não é a exceção. É a regra.
É tão regra que uma das
coisas que se diz às miúdas mal começa a puberdade é "as mulheres
honestas não têm ouvidos" ou "se se meterem contigo nunca respondas".
Quem o diz quer proteger as meninas, com receio de que se reagirem lhes
suceda algo pior do que ouvir coisas horríveis. Portanto aconselha-as a
terem medo; inculca-lhes a ideia de que a virtude está em ignorar, em
calar. E não apenas aqui. Na Bélgica, em 2012, uma estudante de Cinema
fez um vídeo mostrando o que ouvia nas ruas de Bruxelas. Foi tal o
choque que o governo resolveu criminalizar o assédio sexual de rua (como
o BE quer agora fazer cá). E o choque ocorreu porque ninguém tinha
noção da gravidade: as mulheres aprenderam a fazer de conta que não tem
mal (e muitas acabam por crer nisso) e os homens ou são perpetradores ou
acham normal ou simplesmente ignoram até porque ninguém "se mete" com
uma mulher acompanhada por um homem.
Esta semana, surgiu um vídeo
feito em Nova Iorque em que uma jovem mulher é constantemente abordada
na rua. Ao contrário do que sucede com o belga, a maior parte das
abordagens não são grosseiras nos termos usados, só no tom. O que o
vídeo evidencia é o carácter repetitivo, importunador, exasperante do
"piropo". Mostra como sair à rua é, para qualquer mulher, um estado de
alerta permanente, o de quem sabe que a qualquer momento pode ser
abordada por um estranho com ofertas de sexo e sujeita a apreciações,
mais ou menos alarves, sobre o seu aspeto. O que os dois vídeos
demonstram é que o chamado "piropo de rua" é uma forma de agressão e
portanto - não tenhamos medo das palavras - de intimidação e dominação
das mulheres. De lhes tornar claro que na rua não estão seguras; que a
rua não é delas; que se "habilitam". E isto desde meninas, e à bruta,
para aprenderem (aprendermos) a lição.
Contra a penalização
formal destes comportamentos ridiculariza-se; alega-se o não terem
"dignidade penal", ou até a "defesa da liberdade de expressão". Tem
piada: é mesmo em nome dessa liberdade total de expressão, verbal e
física, que em certos países as mulheres ou ficam em casa ou só saem de
burqa. Porque, lá está: sem ouvidos nem coisa nenhuma.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
31/10/14
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