Angola, Pátria e Família
O chefe de gabinete do secretário de Estado das Finanças e os filhos do ministro Rui Machete e do Presidente angolano José Eduardo dos Santos estão ligados à mesma empresa, a ERIGO, uma sociedade de capital de risco. Esta é a história do dia em que o PSD meteu Angola no Governo
Há um "Cavalo de Troia" angolano no Governo. Mas, ao contrário
do outro, este parece agradar a gregos e troianos. Menos épica, a
odisseia vai de Lisboa a Luanda. Cruza governantes, famílias e
jovens-prodígio, hoje trintões, crismados nos ensinamentos financeiros e
empresariais do Opus Dei.
Para começar, uma data: 12 de março de 2014. Foi neste dia que Manuel
Luís Rodrigues, 34 anos, secretário de Estado das Finanças, oficializou
a contratação, para o seu gabinete, de Rodrigo Balancho de Jesus, 36
anos, diretor de investimento da ERIGO, sociedade de capital de risco
ligada à família do Presidente José Eduardo dos Santos e a ilustres
angolanos. A 9 de setembro seguinte, Rodrigo passou de adjunto a chefe
de gabinete do governante.
Manuel Luís Rodrigues tutela, entre outros, o setor empresarial do
Estado e o dossiê das privatizações, competências delegadas pela
ministra das Finanças. Por inerência de funções, o chefe de gabinete tem
acesso a informação reservada. Contratado "em regime de cedência de
interesse público", Rodrigo Balancho de Jesus poderá regressar à ERIGO
findas as funções no Governo.
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Maria Luísa Abrantes |
Constituída em fevereiro de 2012 com um capital social de 250 mil
euros, a empresa tem como administrador José Paulino dos Santos, filho
do Presidente angolano e de Maria Luísa Abrantes, sua segunda mulher. A
líder da Agência Nacional para o Investimento Privado (ANIP) é também a
mãe de Tito Mendonça, CEO da ERIGO, nascido de outra relação. Na
administração da sociedade está igualmente Sérgio Valentim Neto, outro
incontornável de Luanda, com passagem pelo Governo.
Sobre a ERIGO sabe-se pouco. Desconhecem-se acionistas, atividades e
participações, com exceção da quota maioritária na Masemba, que, no ano
passado, comprou as publicações Revista de Vinhos, Lux e Lux Woman à
PRISA.
O sítio da ERIGO na internet diz-nos ao que vem: "A recente crise
financeira internacional criou oportunidades únicas de investimento
para a tomada de posição de capital em empresas europeias e americanas
que detenham know-how e provas dadas no mercado."
Na sede da empresa, em Lisboa, a secretária não se quis identificar
nem forneceu o prometido endereço de email para o envio das perguntas da
VISÃO. Depois do primeiro contacto, não mais atendeu o telefone.
ERIGO: poder na sombra
A ERIGO, como já se viu, "chegou" ao Governo de Portugal através da
ida do seu diretor de investimento para a Secretaria de Estado das
Finanças. Mas para percebermos a nomeação política, talvez seja melhor
conhecer quem o recrutou. E aquilo que os liga. Até se tornar a "sombra"
do ministro Vítor Gaspar e, mais tarde, de Maria Luís Albuquerque,
Manuel Luís Rodrigues foi vice-presidente do PSD, escolha pessoal de
Passos Coelho. Nessa qualidade, integrou a equipa de Eduardo Catroga que
negociou o Orçamento do Estado de 2011.
Agora chamam-lhe "Sr. Privatizações".Deve o "carimbo" ao facto de ter
entre mãos os dossiês sensíveis relacionados com a alienação de
património empresarial do Estado, que desperta apetites privados no País
e no estrangeiro. O governante é produto do ensino de elite do Opus
Dei: tem um MBA pela IESE Business School de Navarra (Espanha), a escola
de administração e direção de empresas da instituição da Igreja
Católica, batizada de "maçonaria branca" pelos críticos. Foi professor
da AESE - Escola de Direção e Negócios, liderada por membros do Opus Dei
e obra cooperativa da prelatura, a partir da qual dirigiu a Naves,
sociedade de capital de risco.
O pelouro de Manuel Luís Rodrigues no Governo tem sido, de resto,
porto seguro para antigos colegas das instituições de ensino e formação
empresarial do Opus Dei, sempre nomeados por ele.
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(Tchizé) |
Fixemo-nos, então, na ERIGO, onde Rodrigo ocupou o cargo de diretor
de investimento, desde a fundação da empresa, até chegar ao Governo pela
mão do colega da Associação de Antigos Alunos da IESE.
Já sabemos que Paulino dos Santos e Tito Mendonça, rostos visíveis da
empresa, são irmãos. A mãe é a mesma, só o pai difere. ?O primeiro é
conhecido na cena artística por Coréon Dú, cantor multifacetado que
navega entre o kuduro e melodias pop cantadas em castelhano. Tito é
consultor externo do Banco de Desenvolvimento de Angola. Maria Luísa
Abrantes, uma das mulheres mais influentes do país, teve outra filha da
relação com o Presidente angolano, de seu nome Welwitschea dos Santos
(Tchizé).
Sócia do irmão Paulino dos Santos em vários projetos, a empresária da
consultora Westside Investments e da Semba Comunicação em Angola, é uma
das personalidades?sob investigação da Procuradoria-Geral da República.
Suspeitas sobre as suas transações financeiras foram denunciadas ao
Ministério Público português pelo antigo embaixador angolano Adriano
Parreira. Tchizé não foi, até agora, constituída arguida, e ameaçou
processar o ex-diplomata por difamação. O mal-estar angolano com as
averiguações em curso nas instituições judiciais portuguesas é
indisfarçável. Mas nem por isso as relações da família "dos Santos" com
outros setores nacionais foram afetadas. Pelo contrário, como se vai
ler.
Portugal, Angola & Filhos
A Rua General Firmino Miguel, em Lisboa, é morada comum de várias
empresas e sociedades. No piso 9.º, do número 3 da torre 2,?fica a sede
da ERIGO.
Um andar acima é o escritório de advogados da Serra Lopes, Cortes Martins (SLCM), do qual Paula Teixeira da Cruz, ministra da Justiça, foi sócia. A sociedade é um peso-pesado dos escritórios de advocacia. Assessorou a empresa estatal chinesa Three Gorges na privatização da EDP e a Controlinveste, de Joaquim Oliveira, nas negociações com o angolano António Mosquito para a venda do grupo.
Um andar acima é o escritório de advogados da Serra Lopes, Cortes Martins (SLCM), do qual Paula Teixeira da Cruz, ministra da Justiça, foi sócia. A sociedade é um peso-pesado dos escritórios de advocacia. Assessorou a empresa estatal chinesa Three Gorges na privatização da EDP e a Controlinveste, de Joaquim Oliveira, nas negociações com o angolano António Mosquito para a venda do grupo.
Na torre, há uma pessoa com acesso aos dois pisos: Miguel Nuno
Ferreira Pena Chancerelle de Machete. Sócio da firma de advogados, é
também presidente da mesa da assembleia-geral da empresa ligada à
família de José Eduardo dos Santos. O advogado faz parte dos órgãos
sociais da ERIGO desde a fundação, mas não é figura de noticiários, nem
dá nas vistas pelas atividades profissionais. Administrador da Benfica
Multimedia, fala cinco línguas e o apelido diz o resto: é filho de Rui
Machete, ministro dos Negócios Estrangeiros.
Rui Machete pede
desculpa a Zedu |
O ministro falara como se, em Portugal, não houvesse separação de
poderes. Dura, a reação da procuradora-geral da República Joana Marques
Vidal lembrou-lhe isso mesmo. E também, já agora, que as investigações
continuavam.
Às explicações sucederam contradições. À rádio angolana, Machete
afirmou que a PGR lhe assegurara não haver nada de grave nas
investigações. Quando a polémica estalou, garantiu nada ter perguntado.
Quisera apenas tranquilizar o regime angolano e evitar danos maiores nas
relações com Luanda, justificou. O Jornal de Angola, diário oficial do
Governo, saiu em defesa do ministro, criticando "as elites corruptas de
Lisboa".
Comentadores, diplomatas e empresários falaram de relações bilaterais
"beliscadas" por causa da polémica. A oposição pediu a demissão do
governante. O PSD contorceu-se, mas o primeiro-ministro segurou-o,
resumindo tudo a uma "expressão menos feliz".
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Justino Pinto de Andrade, respeitado académico angolano, criticou a
"subserviência" do País aos interesses de Luanda. "As autoridades
angolanas não respeitam quem se põe de joelhos", afirmou. No
relacionamento com Angola, escreveu o eurodeputado do PS Francisco
Assis, Portugal não precisa "dos que estão dispostos a contrabandear
valores de sempre por interesses momentâneos". A PGR angolana retaliou,
anunciando investigações a portugueses suspeitos de branqueamento de
capitais.
Cavaco, Durão Barroso e Passos Coelho entraram, então, em campo para
"serenar os ânimos". A PGR arquivou alguns dos casos relativos a figuras
angolanas, a congénere de Luanda fez o mesmo com os portugueses, o
clima desanuviou e Machete declarou-se magoado com alegadas tentativas
de "assassínio político". "Não acerta uma", criticou Marques Mendes,
ex-líder do PSD, no seu comentário televisivo na SIC.
Na altura, uma reação à polémica passou despercebida. Surgiu de Luís
Cortes Martins, sócio e líder do escritório de advocacia onde trabalha
Miguel Machete. "Na base de tudo isto está uma patologia do nosso
sistema de Justiça, que é a violação contínua e sistemática do segredo
de Justiça", criticou o advogado da SLCM no Jornal de Negócios,
realçando: "Se entre as vítimas de violação do segredo de Justiça estão
cidadãos de outros países, obviamente que a questão assume uma
sensibilidade agravadíssima."
A entrevista foi publicada a 6 de novembro do ano passado. No dia
seguinte, começava em Luanda a II Conferência Internacional sobre
Arbitragem, organizada pela SLCM em parceria com a MGA, um dos mais
importantes escritórios da ex-colónia, propriedade de Manuel Gonçalves,
antigo bastonário da Ordem dos Advogados angolanos. As duas sociedades
têm, desde 2012, uma "parceria estratégica" para aproveitar o fluxo
económico entre os dois países. "Angola está num processo de
internacionalização. Nós também queremos ser parceiros dessa
internacionalização, porque Portugal tem muito a beneficiar com os
investimentos angolanos", resumiu o patrão de Miguel Machete. Os
gestores da ERIGO decerto subscreveriam: "O objetivo de criar uma
Sociedade de Capital de Risco é alavancar a presença deste grupo tanto
em Angola como na Europa, atraindo investidores privados e
institucionais que procurem oportunidades de investimento no mercado
internacional", lê-se no site.
Tudo em família?
Já vimos que a ERIGO junta figuras próximas de Eduardo dos Santos.
Registámos que inclui nos órgãos sociais o filho de um ministro
português que mantém uma relação de paninhos quentes com Angola.
Explicámos como o diretor de investimento da empresa entrou no Governo.
Tanto quanto possível, sabemos o que quer a ERIGO.?Para onde vai e com
quem. Mas saberemos tudo sobre as suas ramificações?
O dia é 6 de setembro de 2002. Em Luanda, Walter Rodrigues, jurista
alegadamente próximo do Presidente angolano, sócio e representante legal
de Tchizé dos Santos em negócios, registou a ZE Designs Importação e
Exportação, Lda. na qualidade de "mandatário de José Eduardo dos
Santos", na ocasião "representante legal do seu ?filho menor, José
Eduardo Paulino dos Santos".
Começava assim, com a bênção paterna, a carreira empresarial do atual administrador da ERIGO. Paulino dos Santos tinha 17 anos.
Enquanto a irmã Isabel dos Santos, bilionária, despertou para a vida
empresarial aos 6 anos, a vender ovos, segundo revelou ao Financial
Times, Paulino terá sentido o chamamento mais tarde. Ainda assim, mais
cedo do que o irmão José Filomeno (Zenú), que criou um banco aos 30
anos, gere os ?4 mil milhões de euros do Fundo Soberano de Angola e é,
segundo os analistas, o favorito para suceder ao pai, na presidência.
Os manos Paulino e Tchizé andam de mãos dadas, nos negócios, há mais
de uma década. Em 2003, juntaram-se ao português Hugo Pêgo, marido de
Tchizé, e criaram a Di Oro - Sociedade de Negócios Limitada. A firma
nasceu ligada a eventos de moda e alta-costura. Mas dedicou-se à
exploração de diamantes, depois de um decreto do Presidente angolano
autorizar uma licença de prospeção na Lunda-Norte a um consórcio que
incluía a empresa dos filhos. Em 2010, a licença foi prolongada por dois
anos.
Paulino e Tchizé foram ainda acionistas do Banco de Negócios
Internacionais (BNI), entidade que iniciou atividade em Portugal e opera
em Angola no segmento das grandes empresas e particulares de ?elevado
rendimento.
Em 2006 terão usado o endereço do palácio presidencial como
residência para criar a Semba Comunicação. O caso foi noticiado por
Rafael Marques do Maka Angola, e outros órgãos de informação,
nomeadamente o Público. Logo nesse ano, a empresa dos filhos de José
Eduardo dos Santos lançou uma campanha internacional na CNN, sob os
auspícios da Agência Nacional de Investimento Privado, presidida pela
mãe de ambos, Maria Luísa Abrantes.
Em 2012, a Semba arrecadou 31 milhões de euros do erário público para
campanhas milionárias de promoção do País no estrangeiro e gestão de
dois canais da Televisão Pública de Angola (TPA). No último ano, as
transferências rondaram os 87 milhões de euros, canalizados através do
gabinete de propaganda e comunicação institucional do Governo angolano,
sob tutela da Presidência da República. Sérgio Valentim Neto, sócio e
diretor executivo da Semba e administrador da ERIGO, já foi coordenador
daquele gabinete.
Antes de irmos a outros links do poder da família "dos Santos" em
Portugal vale a pena determo-nos um pouco em Maria Luísa Abrantes, mãe
de Tchizé e Paulino, filhos da relação com o Presidente angolano nas
décadas de 70/80.
Com passagens pelo Governo no currículo, sobretudo na área do
investimento estrangeiro, Milucha, para os íntimos, fez parte da sua
formação universitária em Lisboa (na Clássica e na Lusíada) e é
presidente do Conselho Fiscal do Banco Caixa Geral Totta de Angola,
detido maioritariamente pela Caixa Geral de Depósitos. Através da ANIP,
que representou em Washington e da qual é presidente, priva com líderes
mundiais. Foi o caso, em 2013, de uma conferência do Centro de Relações
Transatlânticas, da Johns Hopkins University, dos EUA, promovida pela
ANIP e a ERIGO, em Luanda, com o apoio institucional do Presidência da
República. Estiveram presentes antigos e atuais governantes de todo o
mundo, entre os quais José Maria Aznar (ex-chefe do Governo espanhol) e
Miguel Relvas ?(ex-ministro do Governo PSD/CDS).
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Promovida pela referida instituição norte-americana, a denominada
Iniciativa de Cooperação para a Bacia do Atlântico inclui, entre os seus
membros, Dias Loureiro (ex-ministro do PSD, ex-BPN) e Tito Mendonça,
CEO da ERIGO. Os dois, por coincidência, estão juntos em negócios desde
março: são administradores da Lagoon, SGPS. A empresa tem a mesma morada
da ERIGO e também é gerida pelo filho do general angolano Carlos
Hendrick da Silva, militar denunciado à Procuradoria-Geral da República
de Portugal pelo ativista de direitos humanos Rafael Marques, a pretexto
do seu livro Diamantes de Sangue (Tinta da China). O fundador do site
Maka Angola acusa-o de cumplicidade com torturas e assassínios na região
diamantífera da Lunda, conforme adiantou a VISÃO, no ano passado.
Como já se percebeu, vários caminhos se cruzam com a ERIGO e os seus administradores, aqui e além-mar.
Em Portugal, a empresa é dona da Masemba, que atua nas áreas da
edição, comunicação e marketing. O gerente é Renato Freitas, antigo
coordenador dos repórteres de imagem da SIC. Os sócios são Tito
Mendonça, Sérgio Valentim Neto, a produtora Até ao Fim do Mundo (detida
por ex-jornalistas do canal de Carnaxide) e a Semba Comunicação, na sua
versão portuguesa. Nesta, juntam-se Paulino dos Santos, filho do
Presidente de Angola, Tito Mendonça, Sérgio Valentim Neto e Renato
Freitas.
Resumindo: a ERIGO, a mais recente aventura empresarial de familiares
e figuras próximas da casta dirigente angolana, cruza-se com dois
governos, um par de famílias, várias sociedades e empresas, entre Lisboa
e Luanda. Neste quadro, o recrutamento, pelo Governo português, do
diretor da empresa com ligações ao Presidente angolano, até parece um
pormenor.
A reação de Rui Machete
O Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros "desconhece a
existência ou o objeto" da ERIGO. "As atividades profissionais do dr.
Miguel Pena Machete apenas a este dizem respeito", referiu Rui Machete
através de um curto esclarecimento enviado à VISÃO. Miguel Machete,
advogado da Serra Lopes, Cortes Martins & Associados, não respondeu
aos nossos emails.
Também o secretário de Estado das Finanças, Manuel Luís Rodrigues,
questionado por escrito sobre a escolha do seu chefe de gabinete, a
ERIGO e as nomeações de antigos colegas da IESE Business School para o
gabinete, optou pelo silêncio. A ERIGO também não respondeu. Por
telefone, email e via redes sociais, em Portugal e Angola, a VISÃO
tentou falar com o CEO, Tito Mendonça, ou outro responsável da empresa,
sem sucesso. Os contactos com o Banco de Desenvolvimento de Angola, onde
é consultor externo, foram infrutíferos. Na sede da sociedade em
Lisboa, após um primeiro contacto, nunca mais os telefonemas da VISÃO
foram atendidos.
* Há muito tempo que falamos sem medo, da promiscuidade entre politicos, ex-políticos ou "adjacentes" de Portugal e Angola. Esta notícia é tão eloquente que nos abstemos de qualquer comentário.
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