09/07/2014

CRISTINA AZEVEDO

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Carta a Sophia

"Olá! Conheço-a desde muito pequena. Dizem-me que comecei a ler com quatro anos de idade e por isso, não demorei nada a chegar à "Menina do mar", ao "Cavaleiro da Dinamarca", à "Fada Oriana", ao " Rapaz de bronze" ou aos "Contos exemplares".Nessa altura, desconfiei um bocado do que li. Era tudo tão bonito, tão leve, tão luminoso que me parecia que a Sophia em vez de escrever pintava. Aguarelas. 
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Depois cresci um pouco e li muitos dos seus poemas. As tintas eram as mesmas e comecei a conjeturar que decerto tinha ido à procura da Grécia para Lisboa.

E isso custou-me um pedaço. É que eu, no fundo, levei um bocado a mal que nos tivesse deixado. Afinal, nasceu no Porto, viveu na Quinta do Campo Alegre (não foi esse o Jardim do "Rapaz de bronze"?), estudou no Colégio do Rosário (acho que na altura se chamava do Sagrado Coração de Maria) e fazia praia na casa de uns amigos na Granja.

"O rapazinho da casa branca adorava as rochas. Adorava o verde das algas, o cheiro da maresia, a frescura transparente das águas. E por isso tinha imensa pena de não ser um peixe para poder ir até ao fundo do mar sem se afogar. E tinha inveja das algas que baloiçavam ao sabor das correntes com um ar tão leve e feliz".

Diga-me se isto podia ser nalgum outro sítio? Só no Norte há cheiro de maresia e algas verdes e suspeito que só por aqui se quer ir ainda ao fundo, mesmo ao fundo do mar.

Acho que li há uns anos que a casa que escolheu (com um jardim desenhado pelo arquiteto Ribeiro Teles mas amanhado por si), na Travessa das Mónicas, lhe atenuava a saudade do Porto que era, segundo dizia, mais perto do mar. E era lindo o mar ao fundo, visto do quadro que o Nikias Skapinakis lhe pintou.

Atropelei entretanto muitos autores e muitas leituras mas acabei por voltar a sentir aquela espécie de orgulho antigo de ser da sua terra. Vivo ao lado do seu Colégio numa casa de muros altos com árvores e casei com um homem que sabe de cor todos os seus poemas. O 25 de Abril para ele não tem 40 anos, tem a frescura do seu eterno texto: "Esta é a madrugada que eu esperava/O dia inicial inteiro e limpo/Onde emergimos da noite e do silêncio/E livres habitamos a substância do tempo".

Voltei a procurá-la nos livros. E veja lá que a reencontrei pela mão do seu velho amigo Jorge de Sena. Alguém comentou num jantar que "Sinais de fogo" era o maior e melhor romance da literatura portuguesa. Não o tinha lido. Li e fiquei fascinada. Procurei mais e ao retirar as "Dedicácias" da prateleira da livraria vi, ao lado, a "Correspondência" que entre ambos trocaram de 59 a 78.

E foi por aí que mais gostei de a ver. De repente a poeta do mistério, "Eu sinto os grandes anjos cujas asas/Contêm todo o vento dos espaços", adquiria uma dimensão concreta e empenhada.
Lembro-me da sensação de conforto e do sorriso que me provocava quando "dizia": "Estou-lhe a escrever com duas canetas estragadas e num papel que esborrata tudo". Ou "Não sei o que me falta para escrever cartas. (...) E cartas por avião ainda é pior. Depois de escritas ficam na gaveta à espera de uma ida à Baixa", ou mesmo "escrevo-lhe a correr no meio das compras de Natal".
A naturalidade com que se mostrava correspondia à franqueza e firmeza com que dizia "Em verso eu não preciso de compreender mas em prosa eu preciso".

Estes lampejos da vida de todos os dias, associados à de integridade inadiável da sua atitude e da sua ação cívica, renderam-me em absoluto. Colhi como exemplo a tentar seguir, a exigência do seu percurso literário, o rigor da sua análise política, a justiça das suas avaliações, a tenacidade do seu recomeçar, a lealdade da sua amizade, enfim a inesgotável energia de, como dizia "tentar ser poeta, mulher de D. Quixote e mãe de cinco filhos".

Mas volto ao princípio, sabe. Ainda acho que no fundo é de cá. De resto é o que diz:" Porque nasci no Porto/ Sei de cor o nome das flores e das árvores/ E não escapo a um certo bairrismo/Mas escapei do provincianismo da capital".
Hoje, fui pôr uma flor no portão do Jardim Botânico".

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
04/07/14

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