29/06/2014

FERNANDA CÂNCIO

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Constituição 
de aluguer?

Em Portugal, é crime uma mulher engravidar com ajuda médica para ter um filho só seu. Já ser "grávida substituta" - engravidar com ajuda médica para dar o filho a outra - vai ser legal. Parece mentira? É o que PSD e PS se preparam para fazer: legalizar a maternidade de substituição, ou seja, a possibilidade de se efetuarem contratos em que uma mulher se compromete a gerar no seu útero um embrião que "pertence" a um casal - mantendo no entanto a proibição de acesso das "mulheres sós" à reprodução assistida quando estas, em vez de "dar" a criança, a queiram manter. 

A proibição, recorde-se, data de 2006. Estipulou-se então, num parlamento com maioria absoluta PS (!), que a reprodução assistida só era permitida a casais heterossexuais (casados ou em união de facto). Às mulheres "sem homem", mesmo às que padecem de um diagnóstico de infertilidade, foi interditada, numa decisão de duvidosa constitucionalidade que à época levou juristas a sugerir que o Presidente deveria solicitar a fiscalização preventiva da norma (não solicitou, claro - era já Cavaco). O diploma também ilegalizava a maternidade de substituição.

Oito anos depois, anuncia-se uma revisão na lei para "resolver o problema" de casais (heterossexuais, bem entendido) em que a mulher não pode gerar, por exemplo por não ter útero. É meritório, claro, atentar ao sofrimento de pessoas que querem ter filhos e não podem. Mas que dizer da atenção ao sofrimento por parte de quem estipula não servir uma mulher "só" (ou em casal homossexual) para mãe - bela mensagem para todas as mães "solteiras", já agora -, podendo no entanto ser incubadora para aliviar a dor de outros? E isto com base em que princípios? Quem interdita o acesso à reprodução assistida por mulheres "sem homem" alega que "ter um filho não é um direito" - o direito deve ser encarado sempre "do ponto de vista da criança". Mas que outro direito, senão o de ter filhos, justifica a legalização da maternidade de substituição? Ainda mais quando "ter filhos", no caso, é uma espécie de adoção com criança encomendada. 

Num país em que a adoção singular, ou seja, por uma só pessoa, é permitida; em que a coadoção em casais do mesmo sexo quase passou no parlamento, com os votos de esmagadora maioria da bancada socialista; em que, por referendo, se legalizou o direito das mulheres a decidir, e só elas, se querem ou não levar uma gravidez a termo; e, por fim, no país onde agora se pretende permitir a maternidade de substituição, reiterar a proibição de mulheres não tuteladas por homens serem mães por recurso a reprodução assistida é do domínio do inverosímil. Ou o PS, principal responsável pela iníqua lei em vigor, aproveita a ocasião para se redimir ou permite a conclusão de que a Constituição lhe é mera barriga de aluguer, eficaz mas descartável geradora de armas de arremesso contra a maioria.


IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
27/06/14

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