Incêndios e abstenção:
é para deixar arder?
A abstenção não é nenhum extintor, mas sim gasolina na fogueira.
Neva na Serra da Estrela às portas dos Santos Populares: falemos de eleições.
Ao céptico não lhe ocorre que o ambientalista possa estar certo
nos fins, mesmo que obtuso e utópico nos meios; ao abstencionista não
lhe ocorre que o seu acto possa ter, como resultado indirecto, o fim do
direito a que tão galantemente renuncia. Esclarecedores dias, estes, em
que a consequência de não votar pode desembocar num futuro negro que
demonstrará tarde demais que a abstenção não é nenhum extintor, mas
gasolina na fogueira. Ide votar, portanto, mesmo que sem caneta, e
desculpem se me repito: façam uns chifres no boletim, se preciso for;
dessa forma, o vosso gesto não será alvo das mais erráticas e obscuras
interpretações demagógicas e será só isso mesmo - um par de chifres.
Não votar tem a eficácia das imagens do país a arder ao vivo e em
directo, ano após ano, nos telejornais - a eficácia "zero". Temo que
chegue o dia em que a indiferença tome proporções tais que, ao invés de
se transformar num pretenso protesto afirmativo e libertário, se
transforme em argumentação falaciosa para a edificação de uma prisão
pior - muito pior - do que este asilo em que achamos que vivemos. A
falta de participação cívica - onde se inclui, entre outros
"pormaiores", o abstencionismo eleitoral - é o óleo da máquina
compressora em que está transformado o eixo político-mediático; "eles",
como gostamos hoje em dia de generalizar, vivem tanto do voto como da
falta dele - é a nós que faz falta o sufrágio, e é sobre esse vácuo que
tem avançado, sub-reptícia e tentacularmente, a criação de um sistema
venal e hipócrita, responsável pelo abandono de pessoas e valores, mas
cheio de homens providenciais. Não consigo encontrar melhor metáfora
para este desatino generalizado do que a forma inexpugnável como, ano
após ano, hectare após hectare, se deixa arder o país. Votar deveria ser
um acto de prudência, como não acender fogueiras em pleno Verão -
qualquer descuido pode tornar-se numa calamidade colectiva que os
pequenos delitos individuais não deixavam, na sua aparente simplicidade
inofensiva, antever. O culto catastrofista nacional não leva a lado
nenhum; virar-lhe a cara, também não.
Não interessa se você é "neo-hippie" e tem como "slogan" lírico o
vetusto "não herdámos o planeta dos nossos pais, pedimo-lo emprestado
aos nossos filhos"; tão pouco interessa se o seu enviesamento
neo-liberal o leva a achar que "money
talks and bullshit walks" - de facto, tal e qual como a abstenção,
estamos a falar de problemas cuja solução não tem receita, apenas
caminho. Essa tomada de consciência começa no fim da denegação implícita
que surge no paradoxo de se criticar um sistema e, ao mesmo tempo,
recusar-se a participar dele. Entender a urgência em recuperar a relação
de afecto com "a terra" (ou com o mar e as pescas, vai dar ao mesmo)
seria, na minha opinião, uma forma transversal de eficácia inédita no
que toca à refundação do sistema político e da própria noção de Estado -
resolver esse vazio, uma missão difícil, mas possível, para o próximo
Presidente da República; isto enquanto, lá está, ainda podemos votar e
cheirar algumas cerejeiras no meio do eucaliptal lusitano.
Na sexta-feira 9 de Maio, o "Jornal de Notícias" assinalava na
capa um número espantoso: entre o consumo de património florestal e
recursos gastos a combatê-lo, os incêndios custaram ao país, em 11 anos,
qualquer coisa como 2,9 mil milhões de euros - ou seja, 10% da dívida
nacional. Uma barbaridade só ultrapassada por outra, em que ninguém
parece querer pensar a sério: os incêndios estão na nossa memória
colectiva como um tsunami ou um qualquer outro armagedão, amputando à
nossa cultura outros tantos biliões incomensuráveis em auto-estima e
descrença na mutualização da responsabilidade pública, que deveria ser o
pilar salutar de qualquer democracia civilizada. Como votar.
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
23/05/14
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