Putos, retretes & sungas
Acredito que, pelo menos na ótica do homem português, a
sunga esteja para as partes baixas como a echarpe está para as partes
altas - uma mariquice desnecessária
1 - Se há uma palavra que foi corrompida pela minha presença no Rio,
essa palavra foi "puto". Há uns anos, quando trabalhava num restaurante
em Nova Iorque, emprestei uma biografia do Maradona a um colega
brasileiro, que no dia seguinte me interrogou, um pouco escandalizado,
após ler os capítulos sobre a infância do craque: "Qual é essa de o
Maradona ser puto?"
Puto, no Brasil, não quer dizer criança, e jamais alguém chama o
irmão mais novo de "puto", como acontece na minha e em muitas outras
famílias portuguesas. Puto, mais que tudo, é um insulto - como chamar
"cabrão" a alguém, mas, segundo o dicionário Aurélio, é também um
pederasta passivo - daí a inquietação do meu amigo, que não podia
aceitar a homossexualidade precoce de Maradona. Uma coisa é certa, desde
que cheguei ao Brasil, nunca mais ouvi estes versos da mesma maneira:
"Parecem bandos de pardais à solta / Os putos, os putos/ São como
índios, capitães da malta/ Os putos, os putos".
2 - Palavras como "sanita" ou "retrete" soam aqui tão estranhas como o
nome de certas ruas em Amsterdão. Em hora de aperto, usa-se o "vaso
(sanitário)" ou a "privada". Mas a única diferença não é semântica. Uma
amiga carioca dizia-me: "Sempre que dou uma festa e a privada de minha
casa entope sei que foi um europeu." Por momentos, questionei-me sobre o
que andavam a comer os europeus para causar tantos transtornos, mas ela
rapidamente me explicou que as canalizações, no Rio, são bastante mais
estreitas e ineficientes, logo, basta um papel a mais para alagar a casa
de banho. Os europeus não sabem disso.
Nos banheiros da cidade, comecei a reparar na quantidade de cartazes -
"Por favor não jogue papel no vaso" - e nos caixotinhos onde o tal
papel deve ser colocado. Não sou capaz. Continuo a prevaricar, o que já
me valeu momentos de aflição, diante de "privadas" alheias, vendo a água
subir enquanto peço aos anjos e santos que ela não transborde, que não
me faça passar vergonhas, e, nos píncaros do pânico, não sei porquê,
lembro-me sempre da frase que li na porta de um WC em Cascais: "Lá fora
és um herói, mas aqui dentro borras-te todo".
3 - O uso do "você", tal como a utilização do gerúndio, são rapidamente
assimilados pelos portugueses, mesmo aqueles que, como eu, mantêm
intacto o seu sotaque lusitano. Trato poucos brasileiro por tu, mas
ainda estranho dizer "você isto", "você aquilo" porque passei a vida a
ouvir que, por razões de boa educação, não se deve chamar ninguém de
"você", mas sim usar o nome da pessoa. Ora, isso confunde os
brasileiros, que não têm esse hábito. Por isso, quando uma amiga
brasileira se apresentou numa reunião de trabalho, em Lisboa, e um dos
seus interlocutores disse "Se a Laura quiser, podemos assinar o contrato
amanhã", ela questionou-se sobre quem seria essa tal Laura, que, ainda
por cima, tinha o seu nome, e de quem dependia a conclusão do negócio.
Era, claro, ela mesma.
4 - Se há tantos portugueses que são donos de padarias no Rio de
Janeiro, se, aliás, o cliché do Joaquim e do Manoel, cobertos de farinha
ou entregando carcaças de porta em porta, ainda persiste no imaginário
brasileiro, então por que raio o "pão francês" - uma espécie mini de
baguete - é o mais popular e comum? O meu problema não tem tanto a ver
com o nome do pão. Sei que os cariocas sempre tiveram um fascínio pelos
franceses. Mas não entendo porque, como tantos padeiros lusos, o pão
pode ser tão medíocre. "É da farinha", explicaram-me. Durante muito
tempo, mastiguei pão que parecia pastilha elástica. Até que, na minha
rua, abriu um Talho Capixaba - padaria, café, charcutaria - cujo
proprietário é português. Desde então, a minha vida mudou. Sou daquelas
pessoas que, mesmo com o frigorifico cheio, acha que passará fome caso
não haja um pãozinho em casa. Sou agora mais devoto do pão do Talho
Capixaba - feito com farinha portuguesa - do que certas velhinhas são
beatas de Nossa Senhora de Fátima.
5 - No Rio, durante o sexo, as pessoas não se vêm - as pessoas gozam.
Os brasileiros acham curiosa a forma como os portugueses designam,
coloquialmente, o momento do orgasmo. Caetano Veloso escreveu uma
música, inspirada na gíria portuga, cujos únicos versos são: "Estou-me a
vir/ E tu como é que te tens por dentro?/ Porque não te vens também?"
Gozar, aqui, não é exclusivo para o sexo, também serve para dizer que
estamos a zombar de alguém - troçar, escarnecer, debochar. Mas o uso
mais comum da palavra "gozar" está relacionado com o momento em que os
foguetes descolam, os músculos deslizam dos ossos e as unhas se cravam
na carne. Sendo assim, há muitos portugueses que metem o pé na argola,
como a miúda que, num restaurante, irritada com um empregado de mesa
imprestável, e para risota geral, lhe perguntou, sem dar-se conta do que
dizia: "Você está gozando na minha cara?"
6 - Não uso sunga. Desde os seis anos, quando me mascarei de Super
Homem, que evito cuecas vermelhas sobre collants azuis. Os meus amigos
brasileiros insistem que uma sunga não é o mesmo que um par de slips,
mas, ainda assim, estou entre aqueles que preferem não ir a banhos de
cuecas.
Opiniões femininas defendem que a sunga valoriza o corpo dos homens.
Talvez o Ryan Gosling, metido numa cuequinha e flanando na beira mar de
Ipanema, possa estragar casamentos e empinar peitinhos, mas há muitos
badochas na areia a quem a sunga, inclemente, só pode prejudicar.
Não se trata de pudor. Já troquei muitos calções na praia sem medo
que vissem a minha bunda. Também não é uma questão exclusivamente
estética, embora acredite que, pelo menos na ótica do homem português, a
sunga esteja para as partes baixas como a echarpe está para as partes
altas - uma mariquice desnecessária. Compreendo que usar sunga é uma
questão de hábito, um detalhe cultural facilmente assimilável - afinal,
troquei a toalha turca pela canga e a bola de Berlim pelo picolé. Não há
mal algum em que os outros usem cuecas na rebentação. Sejam muito
felizes nesses trajes exíguos.
Mas acredito que, ao longo da vida - com tantas perdas, mudanças e
mutações -, é importante preservar um punhado de convicções intactas,
algo que nos lembre de onde viemos e que defina quem somos. Por exemplo,
acredito que não devo gastar mais dinheiro num corte de cabelo do que
num jantar, tal como creio que devo continuar a vestir - para desespero
da minha mulher - t-shirts antiquíssimas e esburacadas com o orgulho de
quem usa a armadura de um super-herói. O que quero dizer é: se a minha
pedra tumular tiver inscrito apenas "Aqui jaz alguém que nunca usou
sunga", terão feito justiça ao homem que eu sempre quis ser.
02/05/14
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