24/05/2014

ÁUREA SAMPAIO

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Certezas e perguntas

 E o primeiro-ministro quer-nos a agradecer à troika. Como é possível? 

 À medida que a História se vai fazendo, vamos tendo um quadro mais nítido do que realmente se passou em todo o processo que conduziu à intervenção direta de entidades externas na governação do País e sobre a forma como estas se comportaram. E há cada vez menos dúvidas de que quem manobrou para obrigar ao pedido de resgate tinha tudo menos belas intenções patrióticas. Já é claro, sobretudo desde que o insuspeito Lobo Xavier revelou, num programa da TSF, que PSD e CDS forçaram a intervenção da troika e que nem a sra Merkel "queria uma intervenção regulada com o memorando, este aparato formal com regras, promessas, compromissos e tudo medido à lupa". 

Então como acabou por acontecer assim? Pacheco Pereira, no mesmo programa, pôs o dedo na ferida. "Este formato foi desejado como instrumento de pressão externa para a política interna", ou seja, "houve alguém que o desejou e que o utilizou de forma teórica e política". Em nome do poder e para ganhar eleições, o PSD de Pedro e o CDS de Paulo escancararam a porta ao resgate, à troika e, com isso, ao empobrecimento dos portugueses, o único "modelo" económico que o atual chefe do Governo tem para oferecer. 

Parece abstruso dizer isto quando temos um Executivo em festa, um primeiro-ministro muito cheio de si, depois da anunciada "saída limpa" para os mercados e quando estamos à beira de ver pelas costas a troika de má memória. É melhor assim do que sermos confrontados com outro resgate, mas tal não invalida continuarmos atentos aos vários episódios desta história, até termos um puzzle completo e fundamentado. E no passado domingo, no Público, surgiu mais um importantíssimo elemento para ajudar à clarificação: a entrevista explosiva de Philippe Legrain, um ex-conselheiro de Durão Barroso na presidência da Comissão Europeia. É um documento tão perturbador e tão dolorosamente ilustrativo da forma como funcionam hoje as instituições e os responsáveis europeus, a sua arrogância, a sua irresponsabilidade, a sua total indiferença às consequências para milhões de cidadãos de decisões tomadas sem rigor e sem critério que se fica arrepiado e incrédulo. 

Em tempo de eleições europeias, devia ser obrigatório ler. As denúncias surgem em catadupa e suscitam perguntas a que os atuais políticos nunca vão responder. Como é possível que os resgates a Portugal e à Grécia tenham servido para salvar os bancos franceses e alemães? Como é possível que os governos europeus "tenham posto os interesses dos bancos à frente dos interesses dos cidadãos"? Como é possível a existência de "uma relação quase corrupta entre bancos e políticos em que muitos políticos séniores ou trabalharam anteriormente para bancos ou esperam trabalhar depois"? Como é possível que a "troika, que desempenhou um papel quase colonial e sem qualquer controlo democrático, não tivesse agido no interesse europeu, mas no interesse dos credores de Portugal"? 

Como é possível "as consequências para Portugal desta profunda, longa e desnecessária recessão económica serem trágicas e ninguém ser responsabilizado"? Como é possível "olhar para as previsões iniciais para a dívida pública e para a situação atual" e não se perceber que "o programa [português] não é, de modo algum, um programa bem sucedido, que Portugal está bem pior do que antes e que a dívida privada não caiu"? E o primeiro-ministro quer-nos a agradecer a esta gente... Como é possível?!

IN "VISÃO"
19/05/14


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