O triunfo do disparate
Na sua recente entrevista à SIC e ao Expresso, Durão Barroso propõe não
apenas um bloco político juntando o PSD, o PS e o CDS como solução
governativa depois das próximas legislativas mas também a apresentação
de um candidato único às presidenciais seguintes. Tudo em nome de uma
plataforma que escamoteia a pluralidade democrática de partidos,
projectos e opiniões e, no fundo, torna excedentária a própria
democracia.
O ainda presidente da Comissão Europeia limita-se a
reproduzir a filosofia do pensamento único vigente numa Europa onde as
escolhas políticas se encontram reféns de um economicismo puro e duro -
e, por isso, completamente destituído de visão estratégica do futuro.
Aluno
tão submisso dessa doutrina como líder inexistente de uma Comissão de
burocratas anódinos, Barroso não se permite ter opiniões próprias ou,
simplesmente, não as tem por mera incapacidade intelectual. Tudo o que
escape à língua única e intraduzível do europês lhe parece ilógico ou
até perigoso.
Daí a sua típica reacção pavloviana ao manifesto
dos 74 sobre a necessidade de reestruturar a dívida portuguesa. Barroso
não questiona a substância do texto ou a racionalidade dos argumentos aí
expostos, mas o terrível pecado de os seus subscritores utilizarem uma
palavra proibida no europês: 'reestruturação'.
Pouco importam a
forma e o contexto em que essa palavra é empregue ou a sua raiz
etimológica, mas, sim, o interdito religioso de a pronunciar. Como nas
histórias de bruxaria, basta ouvir-se 'reestruturação' para que
mercados, governos e comissários europeus, reagindo tão pavlovianamente
como Barroso, estremeçam de pânico e vontade de punição.
Outro
pecado suplementar: alguns subscritores do manifesto - ou seja, Ferreira
Leite e Bagão Félix, ministros de Barroso antes de ele se ter
escapulido para Bruxelas - teriam como propósito reprovável “embaraçar” o
actual Governo. Ora, onde é que está o problema se esses ou outros
subscritores não concordam com as opções governamentais? Teriam de ficar
mudos e quedos devido a um qualquer pacto de silêncio e - de novo - um
interdito religioso inviolável?
Mas Barroso está longe de encontrar-se sozinho no culto do pensamento único - e mínimo.
Nestes
tempos de desorientação, corremos mesmo o risco de ver alguma gente
supostamente credível regredir em Portugal, como diria Jorge de Sena,
até ao reino da estupidez. Teodora Cardoso, presidente do Conselho de
Finanças Públicas e também opositora irredutível da reestruturação da
dívida, mostrou como se pode entrar em colisão com o mais elementar
senso comum.
Ao propor que os levantamentos dos depósitos
bancários dos salários fossem sujeitos a imposto para estimular a
poupança, a antiga administradora do Banco de Portugal perdeu a noção
básica do respeito pela liberdade dos contribuintes, quais crianças
irresponsáveis a necessitar do rigoroso controlo de um pai severo.
Além
disso, trata-se de uma proposta invulgarmente estúpida, pois apenas um
imbecil consumado aceitaria que lhe depositassem o salário na conta
bancária para depois ser taxado por cada levantamento. Que seria dos
pobres bancos, coitados, à míngua de depositantes? A não ser, claro, que
a última arma secreta de Teodora fosse impor por decreto a abertura de
conta bancária a todos os cidadãos…
Outro exemplo edificante:
enquanto Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque se quedavam longe de
Portugal, o secretário de Estado da Administração Pública promovia no
Ministério das Finanças uma operação junto da comunicação social para
testar, a coberto do off the record, o 'ajustamento' dos salários e
pensões a 'critérios demográficos e económicos', tornando os actuais
cortes provisórios em definitivos.
O inevitável ministro da
Presidência, Marques Guedes, logo acusou os media de uma manipulação que
não comprometia o Governo, enquanto Paulo Portas e Poiares Maduro
reconheciam, pelo contrário, um erro de comunicação governamental.
Em
todo o caso, este é um exemplo de como um confrangedor amadorismo de
comunicação se pode conjugar com um grosseiro maquiavelismo político.
Com efeito, o Governo aproveitou esta cortina de fumo para disfarçar a
passagem dos cortes provisórios a definitivos através de uma panóplia de
medidas orçamentais assentes na retórica do combate às 'gorduras' do
Estado. Ora, esse combate será feito essencialmente à custa de despesas
sociais e de um aumento do desemprego no sector público.
Entretanto, no reino da estupidez, o disparate triunfa e tem a impunidade assegurada. Pelo menos por enquanto…
P.S.
- Outro caso de confrangedor amadorismo e desnorte político custou a
cabeça ao anterior Governo francês, depois da previsível e esmagadora
derrota dos socialistas nas eleições municipais. Mas Hollande parece
definitivamente irrecuperável.
IN "SOL"
09/04/14
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