A verdadeira medida da grandeza de um povo,
se ela realmente existe, não é o seu passado, é a forma como se recorda
dele. Não são os seus heróis, são aqueles que escolheu para o serem.
Quando, há uns anos, a RTP lançou aquela tolice de eleger, por telefone,
o melhor português de sempre, escrevi que se tivesse de o escolher não
optaria por um estadista. Nem sequer por alguém que se tivesse
notabilizado por uma luta política continuada. Nem um escritor, nem um
intelectual. Escolheria um herói acidental. Alguém que, movido por algo
mais instintivo do que qualquer convicção ideológica, arriscasse quase
tudo da sua vida. Teria escolhido Aristides de Sousa Mendes. Não era um
político. Era um burocrata que nem sequer tinha uma história de oposição
ao regime ou de apoio à causa democrática. Muito pelo contrário. E é
por isso mesmo que o seu exemplo é tão poderoso.
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Escolheria Sousa Mendes porque acho que a história
de um homem que foi impelido pela mais pura das decências humanas vale
mais do que a de alguém que dedicou toda a sua vida, de forma coerente e
corajosa, ao combate à ditadura? Não. Porque o seu gesto teve mais
relevância do que o papel de vários estadistas? Para os diretamente
implicados sim, para os restantes seguramente não. Porque lhe encontro
uma superioridade moral perante os que decidiram dedicar a sua vida
inteira ao bem público e não foram empurrados pelas circunstâncias para
essa escolha? Também não. Os heróis que escolho são determinados por os
valores que quero valorizar, não por eles mesmos. Como bem explicou
Hannah Arendt, não é preciso ser um monstro para ser cúmplice ativo da
maldade extrema. Basta cumprir ordens e fazer o que é suposto ser feito.
Por isso, valorizar na nossa memória coletiva os que romperam com a
obediência cega é uma medida preventiva. Sobretudo quando os rebeldes
ocupavam postos em que a obediência fazia parte das suas funções e até
tinham simpatia por quem lhes dava as ordens.
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Somos um povo que foi, durante demasiado tempo, condicionado para a obediência. Um "povo bom", como disse o senhor da troika.
E esse tornou-se o nosso maior defeito coletivo. Sem comparação com
tragédias do passado, a nossa infinita obediência tem sido bastante
testada nos últimos anos. O medo e a chantagem, assim como o canino
cumprimento dos nossos deveres com os mais fortes, e apenas com eles,
têm sido os principais instrumentos para a nossa subjugação. O que nos
falta são extraordinários exemplos como os de Aristides de Sousa Mendes,
um burocrata que ousou desobedecer.
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A casa de Aristides de Sousa Mendes está em ruínas. Um grupo de pessoas fez um cordão humano para a salvar
. E o estado a que estamos a deixar chegar os restos materiais da sua
memória é uma terrível metáfora do estado a que estamos a deixar chegar o
seu legado moral. Deixar apodrecer a casa de Sousa Mendes é péssimo um
recado que damos aos que podem ter em si a semente da rebeldia.
Podemos encontrar o mesmo sinal na entrada da wikipédia que é dedicada a Sousa Mendes
. Apesar de largamente documentada, é escrita numa perspetiva
exclusivamente depreciativa e até caluniosa para com o cônsul. Não
hesita em reabilitar o Estado Novo, escolhendo habilidosamente os factos
mais interessantes para a sua tese, omitindo outros fundamentais,
tomando uns por verdadeiros e contestando outros, sempre com o objetivo
de pintar o retrato de um homem desonesto e vigarista, posto na ordem
por um regime com fortes sentimentos humanitários mas empenhado em não
permitir o caos. O texto chega roçam o negacionismo, ao relativizar os
riscos reais que os judeus corriam se ficassem em França. Como a
Wikipédia está aberta à participação de todos, esta entrada diz bem da
negligência a que temos entregue a memória de Sousa Mendes. Espero que
brevemente um historiador ponha mãos à obra e complete este trabalho
insultuosamente parcial. É que a Wikipédia é uma das principais fontes
de consulta para muitas pessoas.
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Sousa Mendes não era um político. Era um burocrata
que nem sequer tinha uma história de oposição ao regime. Era um homem
com falhas e erros no seu percurso. Enfim, não estava predestinado a ser
um herói. Não tratar da sua memória é dizer a todos os que venham a
estar em situações semelhantes à sua que a coragem, aquela que os pode
levar a ter a vida miserável que Sousa Mendes teve depois da sua
ousadia, nunca será reconhecida. Que não lhes daremos a imortalidade na
memória que compense o sofrimento em que viveram pelos outros. E isso é
condenar-nos como povo.
IN "EXPRESSO"
10/04/13
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