HOJE NO
"i"
Street racing.
Corridas chegam aos 300 km/h
e matam nas estradas portuguesas
Corridas chegam aos 300 km/h
e matam nas estradas portuguesas
Durante meses, o i andou à boleia destes carros e descobriu que esta realidade continua a matar todos os anos - com vídeos
Todas as semanas as estradas portuguesas são transformadas em
verdadeiras pistas de alta velocidade, onde pilotos amadores - muitos
sem carta de condução - põem em risco a vida de quem circula nessas
vias. Em vários troços da A1, da A2, do Eixo Norte-Sul ou na ponte das
Lezírias, os carros alterados ultrapassam os 300 quilómetros/hora, em
"picanços" que contam com espectadores nas bermas e com uma logística
bem definida. O fenómeno conhecido como street racing atinge maiores
proporções às terças e quintas-feiras e, segundo uma investigação do i, está longe de ser controlado pelas autoridades.
Entrevistado pelo i, o presidente da Autoridade Nacional de
Segurança Rodoviária, Jorge Jacob, explica que, por se tratar de
corridas em estrada aberta, o fenómeno é difícil de controlar,
adiantando porém não ter conhecimento de que ainda existam estas
corridas ilegais em Portugal (ver entrevista nas páginas 22 e 23). O
fenómeno contudo é bem conhecido das autoridades. Fonte oficial da PSP
explica que o street racing é "uma das muitas dinâmicas que [avaliam] na
componente de trânsito" e revela que muitas das colisões e despistes
com origem no excesso de velocidade estão "associados" a este fenómeno. A
GNR também diz estar a vigiar esta realidade com "particular atenção e
cuidado".
Questionada há cinco dias, a Procuradoria-Geral da República não
informou até ao fecho desta edição se existem investigações em curso a
este fenómenos. Nem tão-pouco esclareceu o número de inquéritos abertos
nos últimos três anos.
O i investigou durante meses este submundo das corridas
perigosas, em que a única coisa que interessa é a adrenalina. A GNR
admite que já morreram seis pessoas entre 1999 e 2010 - todas na área de
Setúbal. O i, contudo, contabilizou mais quatro mortes nos
últimos dois anos relacionadas com o street racing (alguns na área de
jurisdição da PSP). Parte destes casos foram noticiados como
consequência de banais acidentes rodoviários, sem que se tenha aludido
às corridas, organizadas através da internet. "Quando fazemos alterações
no nosso carro, vamos aos fóruns 'meter moedas', depois é esperar. Há
sempre quem queira combinar um pico [corrida] para fazer o teste [do
carro]", explicou ao i um dos praticantes, acrescentando, sem
querer identificar-se: "Os fóruns principais são o PSA Maniacs, o clube
Honda e o clube Ibiza."
Depois de definirem horas e local nos fóruns da internet e na página
de Facebook Puro Aço, encontram-se numa bomba de gasolina perto do sítio
combinado. Por norma são sempre as mesmas. "Para quê mudar se a polícia
se esquece de aparecer?", questiona um destes pilotos, garantindo
existirem "picos há anos na Vasco da Gama e na A1" e que "a polícia sabe
onde todos se encontram".
Raramente chegam à hora combinada. Mas, a maioria das vezes,
ultrapassam a centena de participantes - entre condutores e
espectadores. Segundo contam os street racers que falaram com o i,
mesmo que passe um carro de patrulha não há problema. Isto porque dizem
conseguir controlar a actividade policial com informação privilegiada
que terá supostamente origem em elementos da PSP e da GNR. Por norma,
recebem-na através de SMS e acabam quase sempre por conseguir fugir às
malhas da polícia. Nalguns casos, os acidentes são depois noticiados
como tratando-se de meros despistes ou de corridas isoladas. Mas não.
Trata-se de uma comunidade sólida em que, entre os adeptos, se
encontrarão polícias, pilotos de aviões e até funcionários de grandes
marcas de automóveis.
Confrontada com estas informações, a PSP explicou que, "caso sejam
identificados [polícias] em contra-ordenação ou mesmo em condução
perigosa, são sujeitos às mesmas consequências pecuniárias [...] que os
restantes infractores".
Nestas corridas ilegais existem carros para todos os gostos, mas, na
maioria dos casos, os reis da velocidade são Citroëns e Peugeots (os
conhecidos PSA), Hondas e Seats, mas também Fiats, Fords e BMW. Andam
mais que as viaturas de origem porque os seus donos chegam a gastar mais
de 30 mil euros em transformações que escapam às inspecções periódicas
obrigatórias que transformam viaturas banais em autênticos Ferraris.
Nalguns casos, a potência desses carros chega aos 400 cavalos, o que
lhes permite ultrapassar os 300 quilómetros/hora em estradas onde o
máximo legal são os 80 ou os 120 quilómetros/hora.
Sem travões
As transformações raramente são acompanhadas pelo reforço dos travões e
da capacidade de imobilização do veículo. "Adaptar os travões àquelas
velocidades significaria gastar o dobro do dinheiro em material - e isso
não se faz quase nunca", explicou ao i um mecânico de uma das
oficinas especializadas nestas transformações. "Sei de um Honda CRX que
faz 260 km/h e se tentar travar ele reage da mesma forma que reagia se
carregasse na embraiagem - não faz nada. Há outros em que uma travagem
significa um despiste. Estes carros não estão preparados para travar
àquelas velocidades", concluiu a mesma fonte.
Caso um carro normal lhes apareça à frente, os corredores só têm duas
opções: fazer "bermas" ou aceitar o embate. "Normalmente, o que se faz é
desviar e passar pelas bermas. Há imensos vídeos no YouTube do pessoal a
fazer bermas, mas, quando não dá, bate-se."
Mortes evitáveis
O "UJ", como era conhecido Fábio Lucas, numa alusão à matrícula da sua
viatura, já há muito que praticava este tipo de corridas ilegais em
estrada. Em Abril, seguia na A1 (sentido Norte-Sul), próximo da ponte do
Trancão, quando não conseguiu usar a berma para se desviar de um carro.
Resultado: duas mortes e um paraplégico. "Apareceu-lhe pela frente um
carro com duas pessoas que não tinham nada a ver com aquilo e levaram
com ele. O Fábio morreu e do outro carro uma morreu e outra ficou
paraplégica", explicou Maria Gonçalves (nome fictício) ao i. É uma das poucas mulheres que se aventuraram neste mundo dominado por homens.
Fábio e o outro ocupante são apenas dois exemplos de consequências
que este fenómeno tem causado nas estradas nacionais. Bruno Amaral,
conhecido por Tonecas, é outro caso. Morreu com 26 anos no final de 2010
na A2. O acidente foi gravado pelos ocupantes dos carros que seguiam
atrás e o vídeo foi entregue às autoridades.
A imprensa noticiou na altura o caso tendo por base informações
policiais que mostravam haver conhecimento de detalhes desta realidade.
As notícias relatam que os corredores se terão encontrado próximo do
restaurante Barbas e entraram na auto-estrada praticando velocidades
acima dos 200 km/h. Nos dias seguintes a este acidente, a GNR apertou o
cerco e conseguiu travar o fenómeno, mas só durante alguns dias.
Do lado de quem corre no alcatrão atrás da adrenalina é simples: "A
polícia sabe onde nós estamos e se não faz mais é porque não quer."
Entre a morte de 2010 e as de Abril houve outras duas: em Abril de 2012
um rapaz morreu na A1 (sentido Norte-Sul) junto à saída para São João da
Talha e no final do mesmo ano foi Telmo Esteves quem teve um acidente
fatal na mesma estrada. Excluindo a morte de Tonecas - contabilizada
pela GNR -, o i concluiu terem acontecido nos últimos dois anos mais quatro mortes em consequência do street racing só na região de Lisboa.
Acidente ou homicídio?
A 29 de Dezembro de 2012, Telmo Esteves também morreu durante um destes
encontros na A1. As circunstâncias do acidente ainda hoje são
questionadas por quem conhecia a sua perícia e as rivalidades que criou
neste submundo. A sua morte não aconteceu ao volante do seu Honda Type R
- de 275 cavalos e que ainda dá 280 km/h nas mãos dos seus familiares,
mas sim quando conduzia a moto de um amigo para ir à estrada buscar a
matrícula que havia perdido momentos antes.
No momento em que Telmo é projectado da CBR 600, às 2h30, vários
carros estariam a passar ao lado da moto. Há quem tenha estado no local
do acidente antes dos militares da GNR e diga que Telmo ia muito
depressa, justificando que o manómetro indicava as 13 mil rotações,
despistando-se sozinho. Mas essa peça da moto, que seria uma prova
essencial para saber o que aconteceu e a que velocidade, não estava no
local quando a Brigada de Trânsito da GNR chegou.
Até hoje a família diz não saber quem, nem qual o motivo pelo qual
foi retirado do local o mostrador. Defendem que o manómetro não
desapareceu por acaso e que alguém terá provocado a queda enquanto Telmo
circulava a uma velocidade segura à procura da matrícula do seu carro. A
tese não foi acolhida, porém, pela GNR e o caso foi arquivado pelo
Ministério Público de Loures o mês passado.
No despacho de arquivamento, que o i consultou, lê-se mesmo
que "não se apurou uma suficiência de indícios de qualquer actividade
criminosa e consequente violação de normas estradais, que permitam, ao
nível da imputação objectiva e subjectiva, promover a acção penal quanto
a determinada pessoa".
Contudo, conhecendo como poucos as rivalidades entre as oficinas que
transformam estes carros, Maria tem "a certeza absoluta" que aquela
morte não foi um acidente e atira mesmo alguns nomes como sendo pessoas a
quem este acidente interessava.
A primeira batalha foi perdida, mas o alento para uma possível
descoberta da verdade chegou há poucos dias ao processo. Isto porque foi
anexado um novo dado: a Polícia Judiciária (PJ) recebeu uma chamada
anónima dando conta de que uma carrinha Renault Kangoo - que a
testemunha conseguiu identificar - terá passado por cima de Telmo
naquela noite. Algo em que os familiares sempre acreditaram: "Basta ver a
tinta preta no capacete dele para perceber que não pode ter batido
sozinho", defende José Esteves, pai de Telmo, ao i.
A inspectora Alexandra André, que assina o documento da PJ, anexa
ainda informações sobre o dono da referida carrinha, que está
referenciado por crimes ligados ao roubo e à destruição de carros. A
família de Telmo já pediu a reabertura do processo, que será decidida
agora por um juiz de instrução criminal.
* SELVAJARIA.
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