17/12/2013

RENATA CAMACHO

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Aceitas-me assim? 

« Beija-me só uma vez, dizes, de alto abaixo, beija-me como uma espada, como a fúria do vento»

Na catedral subterrânea as palavras tornam -se difíceis, tombam gotas frias sobre as nossas costas, caminhamos em silêncio, descemos, subimos húmidas rampas, de gruta em gruta, olhando os estalagmites, os rendilhados das estalactites, o frágil barro de uma muito lenta queda de água; sinto a tua mão que me aperta, o sorriso que flutua como luz na escuridão agora total, há quem grite, vamos assistir a uma luta de gigantes ou de monstros, a um sacrifício humano ( e estou pressentindo quem será o sacrificado ) nesta caverna onde o caos se modifica, onde é iminente o desmoronamento.

Não podemos continuar, sabe-lo tu, sei-o eu. Mas quem continua? O quê? Tem acaso o momento seguinte que não seja outro diverso momento? Outra fábula, outro jogo? Que pode nascer do nada que não torne ao nada? Para quê tanto barulho?!, as pedras a rolarem, Prometeu ao nosso lado, na morna brisa do mar. Deixa arder a ilusão, sabemos ambos o que isto é. Mas é tão intenso! Sem projectos .Sorvo-te a vida possível, ofereço-te o meu corpo, queres?, a veia que tu escolheres, mas só sangrará até chegar o sinal de partida do lado de lá das montanhas que cortarem o vento. Aceitas-me assim?, já me aceitaste…

Quiseste ser o meu espelho, mas acredita, não é a imagem de mim que em ti busco. Quando, adormecida, te mirava, jovem saída dum quadro de Gauguin, o que eu queria era a tempestade de descobrir-te. E conheço agora a conhecer a tua biografia. Estranhamente, qualquer coisa abandonou o teu corpo ( o que de ti era menos tu), mas é nesse corpo trigueiro, sempre disposto a enlaçar-me, a transformar-me, que continuo a procurar tanto a vida suprema como a morte, tu numa e noutra, nesse imaginar-te, nesse tempo de mistério, que não se esgota.

Como te vejo?, o que espero de ti? Vejo-te, é claro, com todo o meu ser. 

O que espero - prefiro não profetizar o acontecer, sim, sou avesso a futurar; mas, neste instante, o medo de te decepcionar supera o de me decepcionar. Não quer naufragar num magro poço ( em mim ). Diz-me porque alguma coisa te está vedada para sempre. Porquê ?

És para mim o inesperado, o achamento, a aventura, um esforço de realização sensual. Descoberta de gestos transparentes. Do amor no espanto da conquista. Descoberta também do outro. Descoberta que vens do sonho, caminhando na luz. Princípio da ternura. Princípio-vertigem. Princípio-viajem para um país de limpidez.
És um terreno perigoso - disse-te. Crescem a par e passo o medo e a atracção.


A fragilidade da tua cabeça no meu peito, há pouco, há muito, descansando. Saberás acaso como te vejo e que é pela tua sensualidade não agressiva, pelo que em ti há de suave, de quase ambíguo, que assim te quero ? Em partilha e doação. Será que começo a amar-te violentamente? Sinto que vivo um estremecimento profundo. Como um grito que ouço cada vez mais alto e mais fundo em mim e que me enche de uma força desconhecida. Mas como dizer-te este desejo de fusão, este súbito medo de te perder, de te diluir na distância de uma recordação? Desejo de gritar, de viver ou morrer contigo, desejo de um filho, de um fruto, de um caminho, de delirar em total consciência, de arder neste excesso, de me destruir construindo-me em ti.

Vamos entre risos e abraços. Vamos entre o nunca e o amanhã, entre o inatingível e o provável. Quem és ?, quem sou) Do futuro não constará. Grãos de alegria do instante, centelhas de amor sem dono, interrogações em carne viva.
Miragem ou sonho?


 IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
15/12/13

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