Aceitas-me assim?
« Beija-me só uma vez, dizes, de alto abaixo, beija-me como uma espada, como a fúria do vento»
Na catedral subterrânea as palavras tornam -se difíceis, tombam gotas
frias sobre as nossas costas, caminhamos em silêncio, descemos, subimos
húmidas rampas, de gruta em gruta, olhando os estalagmites, os
rendilhados das estalactites, o frágil barro de uma muito lenta queda de
água; sinto a tua mão que me aperta, o sorriso que flutua como luz na
escuridão agora total, há quem grite, vamos assistir a uma luta de
gigantes ou de monstros, a um sacrifício humano ( e estou pressentindo
quem será o sacrificado ) nesta caverna onde o caos se modifica, onde é
iminente o desmoronamento.
Não podemos continuar, sabe-lo tu, sei-o eu. Mas quem continua? O quê?
Tem acaso o momento seguinte que não seja outro diverso momento? Outra
fábula, outro jogo? Que pode nascer do nada que não torne ao nada? Para
quê tanto barulho?!, as pedras a rolarem, Prometeu ao nosso lado, na
morna brisa do mar. Deixa arder a ilusão, sabemos ambos o que isto é.
Mas é tão intenso! Sem projectos .Sorvo-te a vida possível, ofereço-te o
meu corpo, queres?, a veia que tu escolheres, mas só sangrará até
chegar o sinal de partida do lado de lá das montanhas que cortarem o
vento. Aceitas-me assim?, já me aceitaste…
Quiseste ser o meu espelho, mas acredita, não é a imagem de mim que
em ti busco. Quando, adormecida, te mirava, jovem saída dum quadro de
Gauguin, o que eu queria era a tempestade de descobrir-te. E conheço
agora a conhecer a tua biografia. Estranhamente, qualquer coisa
abandonou o teu corpo ( o que de ti era menos tu), mas é nesse corpo
trigueiro, sempre disposto a enlaçar-me, a transformar-me, que continuo a
procurar tanto a vida suprema como a morte, tu numa e noutra, nesse
imaginar-te, nesse tempo de mistério, que não se esgota.
Como te vejo?, o que espero de ti? Vejo-te, é claro, com todo o meu ser.
O que espero - prefiro não profetizar o acontecer, sim, sou avesso a
futurar; mas, neste instante, o medo de te decepcionar supera o de me
decepcionar. Não quer naufragar num magro poço ( em mim ). Diz-me porque
alguma coisa te está vedada para sempre. Porquê ?
És para mim o inesperado, o achamento, a aventura, um esforço de
realização sensual. Descoberta de gestos transparentes. Do amor no
espanto da conquista. Descoberta também do outro. Descoberta que vens do
sonho, caminhando na luz. Princípio da ternura. Princípio-vertigem.
Princípio-viajem para um país de limpidez.
És um terreno perigoso - disse-te. Crescem a par e passo o medo e a atracção.
A fragilidade da tua cabeça no meu peito, há pouco, há muito,
descansando. Saberás acaso como te vejo e que é pela tua sensualidade
não agressiva, pelo que em ti há de suave, de quase ambíguo, que assim
te quero ? Em partilha e doação. Será que começo a amar-te
violentamente? Sinto que vivo um estremecimento profundo. Como um grito
que ouço cada vez mais alto e mais fundo em mim e que me enche de uma
força desconhecida. Mas como dizer-te este desejo de fusão, este súbito
medo de te perder, de te diluir na distância de uma recordação? Desejo
de gritar, de viver ou morrer contigo, desejo de um filho, de um fruto,
de um caminho, de delirar em total consciência, de arder neste excesso,
de me destruir construindo-me em ti.
Vamos entre risos e abraços. Vamos entre o nunca e o amanhã, entre o
inatingível e o provável. Quem és ?, quem sou) Do futuro não constará.
Grãos de alegria do instante, centelhas de amor sem dono, interrogações
em carne viva.
Miragem ou sonho?
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
15/12/13
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