Enquadrar a história
1- A
propósito da morte de Nelson Mandela, o espaço comunicacional
inflamou-se, a reboque das redes sociais, contra o homem que em 1987
desempenhava o cargo de primeiro-ministro de Portugal e votou contra, ao
lado dos Estados Unidos de Reagan e da Inglaterra de Thatcher, uma
resolução da ONU que defendia a libertação do então dirigente do ANC, o
movimento que pegara em armas contra o detestável apartheid.
Esse
primeiro-ministro era Cavaco Silva e já veio explicar que o sentido de
voto traduzia as reservas portuguesas pelo facto de considerar que esse
texto continha um "incentivo à violência" ao apelar à resistência armada
contra o regime no poder na África do Sul. No entanto, lembra agora o
Presidente da República, Portugal fez uma declaração de voto condenando o
apartheid e votou uma outra resolução pedindo a libertação
imediata de Mandela, descolando aí da posição dos seus dois velhos
aliados, que continuaram a votar contra.
2- Creio
ser insuspeito de simpatias políticas pelo atual Presidente da
Republica. O incrível silêncio que tem mantido ao longo de sete anos
sobre o roubo ocorrido no BPN, no qual participaram figuras destacadas
da sua família política, é algo que deveria chocar qualquer cidadão. É
incompreensível como Cavaco Silva se deixou aprisionar no episódio das
ações da SNL e renunciou a pronunciar-se sobre o maior roubo perpetrado
em democracia. Esta é uma nódoa que a história há de relevar.
Mas
essa mesma história deve ser chamada a compreender o sentido de voto de
Portugal em 1987, numa dessas resoluções, a 42/23. Esse voto que hoje, à
luz da evolução do mundo, parece de todo absurdo só o é em parte -
naquela em que ficaram três países contra 129 (e 22 abstenções). De
resto, havia algumas razões para estarmos ao lado dos nossos aliados
tradicionais.
3- Em 1987, dois anos antes da
queda do Muro de Berlim, vivia-se ainda a Guerra Fria e um dos palcos
era precisamente a África Austral. Ali combatia-se e morria-se. Cuba
estava em Angola, ao lado do MPLA contra a UNITA. O marxismo
instalara-se em Moçambique. A África do Sul vivia governada por um
regime incrível, de apartheid, mas era um aliado estratégico dos
Estados Unidos e da Inglaterra e ali viviam cerca de 500 mil portugueses
que, saídos das nossas ex-colónias, tinham refeito as suas vidas.
O puzzle era muito mais complexo do que parece, visto 25 anos depois.
Acresce
que Mandela era o líder de um movimento que pegara em armas e cuja
libertação podia causar um descalabro regional e uma guerra fratricida.
Nada fazia prever que viesse a revelar-se naquele extraordinário ser
humano que salvou o seu País de um banho de sangue e inspirou biliões de
admiradores em todo o mundo. O revoltado jovem barbudo que pegara em
armas sairia da prisão, 27 anos depois, com o rosto de um homem em paz
consigo mesmo e capaz de perdoar. Um milagre de humanidade e amor ao seu
país, como o tempo haveria de explicar.
E para se ver como o
mundo é falho de lógica, basta recordar que um contemporâneo de Mandela,
visto como muito mais esperançoso para a causa da paz, Roberto Mugabe,
se transformaria num miserável ditador que guiou a então próspera
Rodésia ao miserável Zimbabwe de hoje, onde os homens voltaram a ser
perseguidos pela cor da pele.
4- Serve isto para
explicar que, descontado o habitual seguidismo nacional em relação aos
seus velhos aliados, visível ainda há poucos anos na cimeira das Lajes,
que selou a invasão do Iraque, a posição de Cavaco Silva enquanto
primeiro-ministro de Portugal teve naquele ano de 1987 uma lógica
compreensível vista à luz dos interesses e da política de alianças
portuguesas. O Nelson Mandela que Cavaco receberia em 1993 (convém
também lembrar isso), e que Clinton visitou com respeito e admiração, é
uma revelação posterior.
Se pesarmos todos os argumentos e
colocarmos as coisas numa perspetiva temporal, não temos senão de
compreender as posições do Governo de Cavaco Silva em 1987 e de dar o
devido valor às recentes palavras de Adriano Moreira em entrevista ao
DN. Dizia ele que todos os ocidentais devem desculpa aos países
africanos e que a diplomacia portuguesa é tão boa como a do Vaticano mas
sem a ajuda do Espírito Santo... É mesmo isso.
Cavaco
Silva só não explica completamente as balizas da sua posição porque quer
ser politicamente correto à luz de 2013. Tão politicamente correto
quanto todos aqueles que agora gritam sem saberem do que estão a falar e
que não percebem a lição que deixa Mandela: o seu exemplo é demasiado
grande para ser utilizado contra quem quer que seja.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
07/12/13
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