A meretriz
e o proxeneta
Os portugueses deixam-se distrair para esquecer o essencial
Ontem senti-me num prostíbulo a ser explorada por uma meretriz. Há
coisas que, de facto, só podem ser chamadas pelo nome por muito que se
tente doirar a pilula para não chocar os espíritos mais púdicos ou os
ouvidos mais sensíveis.
Sei-o bem e, por isso, depois de muito andar às
voltas à procura de expressão menos agressiva, tive de resignar-me à
evidência. Assumi a vulgaridade e, sem pejo, dei voz ao que vai na alma
dos milhões de portugueses que, em peregrinação, estão a dirigir-se às
repartições de finanças de todo o país.
Condenados a (re)pagarem o
Imposto Único de Circulação que, qual fantasma, surge vindo do passado,
sabe-se lá por que artes, desembolsam, pela enésima vez, mais uns trocos
para os cofres do Estado. Confesso que a ideia é brilhante e digna de
uma meretriz: sugar o cliente – leia-se contribuinte – até ao tutano,
fazendo-o pagar por um serviço que até já está fora de prazo. Só a mim –
cidadã responsável que nunca se lembrou de guardar o talão de
multibanco do pagamento do IUC do ano anterior ao vigente quanto mais o
de há quatro anos – o Estado me levou ontem, de uma assentada só, a
módica quantia de 107,90 euros à conta de uma mota e de um carro.
Quis a
sorte, que às vezes protege os indefesos, remeter para data anterior a
2007 a matrícula do crime e, por isso, o imposto da viatura se ficou
pelos 20 euros. Dos juros de mora e das duas coimas pelo suposto
pagamento fora de prazo, o incumprimento dizia respeito a 2009, também
não me livrei. O sistema, disse-me a funcionária que me atendeu, muito
simpática por sinal, não mos podia perdoar. Eu era uma perigosa
cadastrada fiscal, pois num ano de má memória entregara a declaração de
IRS um dia fora de prazo. Agradeço à Providência não ter mais veículos à
data porque, se não, com pagamentos duplicados, juros e multas, lá se
ia o meu subsídio de férias virtual que, provavelmente, nunca irei
receber. Num rasgo de ingenuidade e com a voz contida, confessei à
constrangida funcionária que tinha pagado, a tempo e horas, os ditos
impostos e, num ato de derradeiro desespero, questionei-a de como
poderia saber por onde andariam os malditos comprovativos se, nem
sequer, me lembrava já da cor dos veículos!
Ela, com olhar compreensivo,
aconselhou-me o óbvio: arquivar tudo a partir de agora. E quase
envergonhada desabafou que, curiosamente, muito poucos dos – e cito –
“milhões” de contribuintes em falta contactados pelas finanças tinham
conseguido provar, até agora, que pagaram. Alguma coisa não bate certo!
Das duas, uma: ou em 2009 a fuga ao fisco foi sem precedentes e, se
calhar, estamos como estamos porque só meia dúzia pagou o IUC ou então é
simples e elementar que NINGUÉM no seu santo juízo e sem a mania da
perseguição se lembrou de guardar os recibos do IUC de há quatro anos.
Esperta, atenta e, quem sabe?, desesperada, a meretriz montou bem esta
armadilha. Pagar a duplicar como eu e ponto final. É assim legítimo
pensar que, também nisto, o Estado está a agir de má-fé, sabendo de
antemão que lá se vão enchendo os cofres das PPPs, das swaps e das
fundações à custa de uma pequena distração ou de um breve desleixo dos
contribuintes.
Entretanto, os portugueses deixam-se distrair para esquecer o essencial.
Neste barco à deriva, muitos se indignam, mas poucos levantam a voz. E
quem governa sabe-o. A greve dos professores, que por acaso são também
funcionários públicos, foi disso exemplo. Contou-se a história do lobo
mau e do capuchinho vermelho e deu-se força à estratégia governativa de
esvaziar o grito possível de revolta num tempo que não poupa ninguém e
que exige a união de toda a sociedade contra um alvo comum. Mas, verdade
seja dita, é sempre mais fácil derrubar uma classe do que um governo.
Este, rezemos todos, oxalá não se lembre de exigir à meretriz que
invente novas formas de rebuscar mais dinheiro do passado.
É que, não se
esqueça, onde há uma meretriz, há sempre um proxeneta.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
29/07/13
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