PS ( Política Surrealista)
Por que é que um cidadão
de esquerda, preocupado com o rumo que o país está tomar, temendo que a
distância dos cidadãos em relação ao sistema político democrático se
agrave, inconformado com a falta de unidade entre as forças de esquerda
sociologicamente maioritárias, tem dificuldade em conter a raiva ante as
insondáveis uniões divisionistas e divisões unitaristas do PS?
Por três razões. Primeiro, sentimento de impotência: sabe que se der
um murro na mesa o único efeito possível é magoar-se, tal a incapacidade
do partido em distinguir luta política de luta por cargos políticos.
Segundo, sensação de perigo: o país precisa de uma alternativa política e
o PS parece apostado em desistir dela antes mesmo de tentar. Terceiro,
inconformismo ante o desperdício da oportunidade: o PS tem algum
potencial para reinventar-se como partido de esquerda, um potencial
muito limitado e problemático, mas mesmo assim existente.
Só esta última razão permite transformar a raiva em esperança, mesmo
que esta mal se distinga do desespero. Dois factos bloqueiam esse
potencial e outros dois podem ativá-lo. O primeiro bloqueio decorre da
qualidade dos líderes. A estatura de Mário Soares criou uma sombra
difícil de dissipar. Os líderes que se seguiram distinguiram-se mais
pela integridade ética do que pela coragem política (Vítor Constâncio,
Jorge Sampaio e António Guterres). O mais lúcido e corajoso de todos,
Ferro Rodrigues, foi assassinado politicamente de forma sumária e
vergonhosa.
O segundo bloqueio advém da perda de cultura socialista (e até de
cultura geral) entre os dirigentes, o que amortece as clivagens
políticas e aguça as clivagens pessoais. Quem não for militante do PS
não entende a hostilidade entre José Sócrates e António José Seguro,
quando ambos são produto da mesma terceira via (entre capitalismo e
capitalismo) que vergou os partidos socialistas europeus às exigências
do neoliberalismo e os fez vender a alma do Estado de bem-estar social.
Seguro está condenado a continuar Sócrates em piores condições. Causa
arrepios pensar que não frustrará as expectativas apenas por estas serem
nulas.
O primeiro facto potenciador de transformação no PS é o contexto
europeu e mundial. O Sul da Europa, o Médio Oriente e o Norte de África
são as faces mais visíveis da vertigem predadora de um capitalismo
selvagem que só se reconhece na extração violenta dos recursos humanos e
naturais. É agora mais visível que o socialismo democrático foi
construído contra a corrente, com muita luta e coragem que a Guerra Fria
foi tornando desnecessárias. Tornou-se então claro que a coragem e a
vontade de luta dos socialistas se tinham transformado, elas próprias,
num instrumento da Guerra Fria, capazes de se exercitar contra
comunistas e esquerdistas mas nunca contra capitalistas. É bem possível
que não sejam os socialistas a reinventar o socialismo democrático. Uma
coisa é certa: a ideia de um outro mundo possível nunca foi tão urgente e
necessária, e reside nela a última reserva democrática do mundo.
O segundo facto potenciador é que os socialistas portugueses já
mostraram estar conscientes de que qualquer vitória que o atual líder
lhes proporcione a curto prazo será paga no futuro com pesadas derrotas.
Os militantes socialistas jovens e pobres - que (ainda não enriqueceram
no governo nem nas empresas - leram com atenção o livro de António
Costa, Caminho Aberto, publicado em 2012, e ficaram tão impressionados
como nós com a experiência governativa, lucidez política, capacidade de
negociação com adversários, revelada pelo autor num livro que retrata
como poucos o Portugal político dos últimos 20 anos e abre pistas
luminosas sobre os desafios que a sociedade portuguesa enfrenta. Devem
sentir, como nós, a dificuldade em conter a raiva.
Poderão dar um murro na mesa e terem algum efeito além de se
magoarem? A tragédia do socialismo democrático atual é ser um fogo
apagado que só reacende as brasas quando troca a coragem política pela
ética, como se a coragem política não fosse eminentemente ética.
IN "VISÃO"
08/02/13
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