Natal dos desempregados
Caminhas como se estivesses parado e procuras as forças necessárias para não esqueceres qual é o teu valor, para continuares a saber quem és, para dares uma resposta definitiva ao silêncio
Quem és tu? Os dias
passam e a tua cabeça repete uma pergunta em cada silêncio. Todos os
dias de manhã, logo depois de acordar, há silêncio. Enquanto escolhes a
roupa e te vestes, há silêncio. Nos intervalos do tempo, há silêncio.
Quem és tu? Agora, dás contigo a olhar para os programas da manhã na
televisão, esqueces o olhar por instantes. Um especialista enumera
formas de prevenir a queda de cabelo, um cozinheiro revela segredos para
rechear o peru, um professor de trabalhos manuais ensina a fazer
decorações de Natal com garrafas de plástico usadas. A apresentadora
repete cinco vezes o número que pisca no ecrã. Telefona, podes ganhar;
telefona, podes ganhar. Não telefonas. Sabes que não podes ganhar.
Antes, telefonaste para números do jornal, da internet, números escritos
num papel dobrado ou em cartões de visita. Mas o tempo passou. Dias,
meses, estações inteiras, tempo carregado de silêncio, silêncio,
silêncio carregado de perguntas.
Qual é o teu valor? A história da tua vida dilui-se nestes dias.
Não era uma história enorme, mas era tua e tinha um sentido. Os teus
pensamentos encontravam-lhe continuação a cada instante, sabias sempre o
que tinhas de fazer a seguir. Hoje, surpreendes-te a ter saudades de
avançar pelas ruas às sete da manhã com as orelhas geladas, saudades de
olhar para o relógio e esperar por um minuto que parecia nunca mais
chegar. Antes, esse minuto quase infinito parecia não chegar, o número
firme no mostrador do relógio, mas chegava; agora, esse mesmo minuto
também parece não chegar, mas o número no mostrador do relógio passa,
cinco transforma-se em seis, seis transforma-se em sete, mas o minuto
que esperas não chega, parece não chegar nunca. Estás parado.
Qual é o teu valor? O rosto das pessoas com que te cruzas todos os
dias repetem-te perguntas, mesmo quando estão apenas a olhar para ti,
sem dizer nada. O Natal chegou às ruas, às montras, à publicidade.
Caminhas de mãos nos bolsos. Às vezes, vais dar a volta para não
passares à frente daquela pessoa que está sempre no mesmo sítio a ver
quem passa. E até o rosto daqueles que não conheces, que nunca viste
antes, que nunca voltarás a ver, parecem repetir-te essas mesmas
perguntas. Chega a hora de almoço. Chega todos os dias a hora de almoço
porque todos os dias chegam as mesmas horas. Em casa, os sons da casa.
Colocas a primeira colher de sopa na boca.
Quem és tu? Já te imaginaste a fazer mil coisas que, antes, nunca
tinhas considerado. És uma pessoa diferente em todas elas e, no
entanto, há um muro invisível entre ti e cada uma dessas ideias.
Consegues vê-las lá ao fundo, tens a certeza de ser capaz de fazê-las,
mas não consegues atravessar esse muro invisível. Como se falasses e
ninguém te ouvisse, como se falasses e ninguém acreditasse em ti, como
se não existisses. A sopa não tem sabor, mas não podes dizer. Apenas
podes limpar a boca e mostrar-te agradecido, obrigado. Agora, tens uma
tarde imensa à tua frente.
Quem és tu? As montras das lojas reflectem-te. A tua imagem
suspensa, rodeada pelo brilho do Natal. À tua volta, homens e mulheres
dirigem-se a algum lugar, o mundo continua. Vês-te: os teus braços ao
longo do corpo, os teus olhos.
És demasiado novo ou és demasiado velho.
Mesmo quando te descolas da montra e caminhas, levas contigo a
imagem do teu próprio reflexo, vai no teu interior. Os passos levam-te,
são lentos, sem pressa. Não pensas no que vais encontrar lá à frente
porque não esperas nada. As crianças estão na escola, as pessoas estão
nas suas vidas, só tu estás aqui.
Quem és tu? Mais tarde ou mais cedo, chegará a noite. Chega sempre,
todos os dias. Depois da hora de jantar, também diária, depois do
serão, notícias, telenovela, concursos em que ninguém ganha nada,
chegará a hora de dormir, o fim de mais um dia. Por vezes, lanças essa
ideia de encontro às perguntas que tudo te repete, mas sabes que este
dia não terminará verdadeiramente. Caminhas como se estivesses parado e
procuras as forças que se vão desfazendo, as forças necessárias para não
esqueceres qual é o teu valor, para continuares a saber quem és, para
dares uma resposta definitiva ao silêncio.
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