07/11/2012

VICENTE JORGE SILVA

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 Uma enorme mistificação

 Lançar a proposta de ‘refundação’ do chamado memorando de entendimento nas vésperas do debate parlamentar do Orçamento do Estado (OE) e utilizar esse subterfúgio para desviar as atenções das medidas previstas nesse OE não passa – como diria Vítor Gaspar – de uma enorme mistificação.
Se, a pretexto da ‘refundação’ do memorando, o Governo estivesse verdadeiramente empenhado em discutir as funções sociais do Estado – e a sua sustentabilidade futura –, não poderia ter escolhido ocasião mais inoportuna e disparatada. É que essa discussão, para ser útil nas actuais circunstâncias, só faria sentido antes de definidas as linhas mestras do OE, permitindo influenciar a filosofia e os objectivos orçamentais.
Ao propor-se abrir um debate sobre o papel do Estado, sobrepondo-o ao tema fundamental da actualidade parlamentar, o Governo encenou uma fuga em frente para disfarçar a generalizada convicção – partilhada, inconfessadamente, por ele próprio – de que o OE para 2013 está, à partida, condenado ao desastre.
Daí o tal plano B de despesas a cortar, mas que o Governo não sabe ainda onde nem como. Ou, em alternativa desesperada, a bandeira da rendição a um segundo programa de resgate.
Talvez valha a pena recordar, uma vez mais, que o OE para 2013 – seguindo a mesma lógica desastrosa do Orçamento deste ano – virou do avesso os pressupostos do memorando ‘fundador’. Estava aí previsto um esforço de 80 por cento do lado da despesa e 20 por cento do lado da receita, mas o Governo fez exactamente o contrário.
Para quem pretendia ser mais troikista do que a troika, esta subversão reincidente do espírito do memorando já deveria ter constituído matéria grave de reflexão. E não só por parte do Governo mas também da troika, ao longo dos sucessivos exames feitos às nossas contas.
Nada disso aconteceu, porém. Gaspar e o Governo foram mantendo, ao arrepio dos factos, a imagem de ‘bons alunos’. Afinal, o que importava à troika era menos um critério essencial do memorando ‘fundador’ do que um resultado contabilístico ‘criativo’, embora subvertendo ostensivamente esse critério.
Mas as contas não bateram certo da primeira vez e ninguém duvida de que não vão bater certo da segunda. Por culpa de quem? Dos dogmáticos intransigentes, dos que insistiram em mistificar a realidade para atingir objectivos impossíveis, dos que se renderam com subserviência ou convicção cega à ortodoxia financeira.
Desde logo, os ciclos repetitivos de austeridade e os juros dos empréstimos concedidos aos países sob resgate não só afastam qualquer perspectiva de recuperação e crescimento, como condenam as respectivas sociedades a uma regressão catastrófica. Até a Irlanda, ao contrário do que se poderia pensar, se debate hoje com dificuldades dramáticas para pagar os juros insustentáveis dos empréstimos utilizados na recapitalização do seu sistema bancário.
Ao concluir que o próximo OE está prometido a um rotundo fracasso – o que apenas surpreende quem tanto persistiu num equívoco suicida –, Passos Coelho socorreu-se do mirífico plano B, para compensar o buraco financeiro que se avizinha, e da nova fórmula mágica da ‘refundação’ do memorando, subentendendo através dela uma revisão constitucional que permita reduzir a escala do Estado e as suas funções sociais.
Só que o Governo já optara por fechar as portas a esse debate necessário sobre a sustentabilidade das funções do Estado, ao apresentar um Orçamento que vai implicar um empobrecimento generalizado da sociedade, o agravamento da recessão e do desemprego ou a destruição da classe média. Ou seja: menos receitas, mais encargos sociais.
Com o alargamento das camadas da população condenadas à precariedade e dependentes da assistência estatal para sobreviverem, que espaço resta para repensar as funções do Estado e reformar o seu papel no futuro? Aumentar brutalmente os impostos ou reduzir violentamente os apoios sociais é uma alternativa sem sentido, até porque o Governo já decidiu jogar simultaneamente nesses dois tabuleiros e, pelos vistos, nem assim será suficiente.
Só mesmo o desaparecimento total das funções sociais do Estado e a sua redução a cobrador insaciável de impostos resolveria, por absurdo, o dilema de Passos Coelho. Ou seja: com esta política, esta troika, este Governo, estamos condenados a um beco sem saída. Chegámos ao fim da linha e é urgente iniciar um novo ciclo, por maiores que sejam os seus custos políticos – com eleições ou sem elas. E é também mais do que tempo para o Presidente da República fazer ouvir a sua voz e assumir as suas responsabilidades.


IN "SOL"
05/11/12

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