Uma enorme mistificação
Lançar a proposta de ‘refundação’ do chamado memorando de entendimento
nas vésperas do debate parlamentar do Orçamento do Estado (OE) e
utilizar esse subterfúgio para desviar as atenções das medidas previstas
nesse OE não passa – como diria Vítor Gaspar – de uma enorme
mistificação.
Se, a pretexto da ‘refundação’ do memorando, o Governo
estivesse verdadeiramente empenhado em discutir as funções sociais do
Estado – e a sua sustentabilidade futura –, não poderia ter escolhido
ocasião mais inoportuna e disparatada. É que essa discussão, para ser
útil nas actuais circunstâncias, só faria sentido antes de definidas as
linhas mestras do OE, permitindo influenciar a filosofia e os objectivos
orçamentais.
Ao propor-se abrir um debate sobre o papel do
Estado, sobrepondo-o ao tema fundamental da actualidade parlamentar, o
Governo encenou uma fuga em frente para disfarçar a generalizada
convicção – partilhada, inconfessadamente, por ele próprio – de que o OE
para 2013 está, à partida, condenado ao desastre.
Daí o tal
plano B de despesas a cortar, mas que o Governo não sabe ainda onde nem
como. Ou, em alternativa desesperada, a bandeira da rendição a um
segundo programa de resgate.
Talvez valha a pena recordar, uma
vez mais, que o OE para 2013 – seguindo a mesma lógica desastrosa do
Orçamento deste ano – virou do avesso os pressupostos do memorando
‘fundador’. Estava aí previsto um esforço de 80 por cento do lado da
despesa e 20 por cento do lado da receita, mas o Governo fez exactamente
o contrário.
Para quem pretendia ser mais troikista do que a
troika, esta subversão reincidente do espírito do memorando já deveria
ter constituído matéria grave de reflexão. E não só por parte do Governo
mas também da troika, ao longo dos sucessivos exames feitos às nossas
contas.
Nada disso aconteceu, porém. Gaspar e o Governo foram
mantendo, ao arrepio dos factos, a imagem de ‘bons alunos’. Afinal, o
que importava à troika era menos um critério essencial do memorando
‘fundador’ do que um resultado contabilístico ‘criativo’, embora
subvertendo ostensivamente esse critério.
Mas as contas não
bateram certo da primeira vez e ninguém duvida de que não vão bater
certo da segunda. Por culpa de quem? Dos dogmáticos intransigentes, dos
que insistiram em mistificar a realidade para atingir objectivos
impossíveis, dos que se renderam com subserviência ou convicção cega à
ortodoxia financeira.
Desde logo, os ciclos repetitivos de
austeridade e os juros dos empréstimos concedidos aos países sob resgate
não só afastam qualquer perspectiva de recuperação e crescimento, como
condenam as respectivas sociedades a uma regressão catastrófica. Até a
Irlanda, ao contrário do que se poderia pensar, se debate hoje com
dificuldades dramáticas para pagar os juros insustentáveis dos
empréstimos utilizados na recapitalização do seu sistema bancário.
Ao
concluir que o próximo OE está prometido a um rotundo fracasso – o que
apenas surpreende quem tanto persistiu num equívoco suicida –, Passos
Coelho socorreu-se do mirífico plano B, para compensar o buraco
financeiro que se avizinha, e da nova fórmula mágica da ‘refundação’ do
memorando, subentendendo através dela uma revisão constitucional que
permita reduzir a escala do Estado e as suas funções sociais.
Só
que o Governo já optara por fechar as portas a esse debate necessário
sobre a sustentabilidade das funções do Estado, ao apresentar um
Orçamento que vai implicar um empobrecimento generalizado da sociedade, o
agravamento da recessão e do desemprego ou a destruição da classe
média. Ou seja: menos receitas, mais encargos sociais.
Com o
alargamento das camadas da população condenadas à precariedade e
dependentes da assistência estatal para sobreviverem, que espaço resta
para repensar as funções do Estado e reformar o seu papel no futuro?
Aumentar brutalmente os impostos ou reduzir violentamente os apoios
sociais é uma alternativa sem sentido, até porque o Governo já decidiu
jogar simultaneamente nesses dois tabuleiros e, pelos vistos, nem assim
será suficiente.
Só mesmo o desaparecimento total das funções
sociais do Estado e a sua redução a cobrador insaciável de impostos
resolveria, por absurdo, o dilema de Passos Coelho. Ou seja: com esta
política, esta troika, este Governo, estamos condenados a um beco sem
saída. Chegámos ao fim da linha e é urgente iniciar um novo ciclo, por
maiores que sejam os seus custos políticos – com eleições ou sem elas. E
é também mais do que tempo para o Presidente da República fazer ouvir a
sua voz e assumir as suas responsabilidades.
IN "SOL"
05/11/12
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