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Cientistas portugueses obrigam células
. cancerosas a suicidarem-se
O controlo de uma única reacção química numa proteína teve como consequência a morte de células que, por definição, são imortais. Patente para esta inovação foi pedida para a Europa.
É um filme que se desenrola durante um dia inteiro, com um fim
aparentemente trágico: o suicídio de uma célula. Só não é classificado
como drama porque a morte desta célula é uma coisa boa, pelo menos para
nós, ou não fosse ela cancerosa. Um feito da equipa coordenada por
Hélder Maiato, do Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC) da
Universidade do Porto.
Neste filme, a equipa utilizou a primeira linha de
células tumorais isolada, em 1951, oriunda do cancro do colo do útero.
Estas células têm sido bastante usadas como modelo em laboratório, pelas
suas características imortais. Com elas, os cientistas portugueses
fizeram agora uma série de experiências, registadas em imagens ao
microscópio, que conseguiram interferir no processo de divisão celular.
Ao
contrário das células normais, que se suicidam ao fim de umas quantas
divisões, num processo geneticamente programado, as cancerosas são
imortais. Se nada for feito que trave essa imortalidade, dividem-se para
sempre e invadem outros tecidos.
Quando uma célula se divide,
para que dê origem a duas células geneticamente iguais, os cromossomas,
que contêm a informação genética muito compactada, têm de se distribuir
de forma igual, num processo conhecido por mitose. Nessa altura,
forma-se uma pequena ligação entre os cromossomas e a maquinaria que os
vai distribuir durante a divisão celular. “Alterações neste interface
são conhecidas por estarem na base da instabilidade genética que ocorre
em vários tipos de cancro”, explica Hélder Maiato, de 36 anos.
Ajudar a agarrar as cordas
Não
nos assustemos com os nomes: o interface chama-se cinetócoro e a
maquinaria de distribuição dos cromossomas é o fuso mitótico. Mais: este
fuso é formado por uma espécie de cordas que movem os cromossomas.
“Para se mexerem, os cromossomas precisam que estas cordas actuem e o
ponto de ligação entre elas e os cromossomas é o cinetócoro.”
Mas
como é controlada a ligação entre o cinetócoro e o fuso mitótico? Se,
por um lado, já se sabia que é frequente haver problemas na ligação do
cinetócoro ao fuso mitótico em vários tipos de cancro, por outro não se
sabia o que regulava essa união, que tem de ser estável. Não pode ser
nem forte nem fraca de mais.
É aqui que a equipa de Maiato tem
estado a afinar a compreensão deste processo. Há 12 anos, graças a
estudos em moscas-da-fruta, descobriu duas proteínas que ajudam a
agarrar o cinetócoro às cordas do fuso mitótico. São as CLASP, nome que
remete para a palavra inglesa “agarrar”. Agora, a compreensão do papel
de uma dessas proteínas, a CLASP2, foi aprofundada, com a descoberta de
um novo mecanismo de regulação molecular.
Para tornar estável
aquela união, normalmente a proteína CLASP2 é alvo de uma modificação,
através de uma única reacção química, provocada por outra proteína, a
Plk1. “Mostrámos que basta uma pequena modificação na CLASP2 para
estabilizar o interface.”
Mas quando os cientistas interferiram
com essa reacção química, os efeitos para as células foram
catastróficos. “Quando impedimos que esta modificação acontecesse, as
células não conseguiam estabilizar o interface e não conseguiam fazer o
tal fuso mitótico e dividir-se”, explica Hélder Maiato. “Acabavam por
morrer, sem conseguirem dividir-se.”
Ainda começavam a formar o
fuso mitótico com as suas cordas – que tem dois pólos na situação
normal, para que a divisão seja possível –, mas essa estrutura acabava
por se desfazer. O fuso mitótico evoluía para um só pólo e as células
cancerosas, impossibilitadas assim de distribuírem os cromossomas e de
se dividirem, tinham a morte como destino.
Para levar as células a
matarem-se, bastou fazer a alteração de uma única letra no gene que
comanda o fabrico da CLASP2. E o resultado foi a produção de uma versão
da proteína que também tinha uma única alteração: um dos seus
aminoácidos, ou tijolos, foi trocado por outro. Ao colocarem a nova
versão do gene sintético nas células cancerosas, elas passavam a
produzir a versão mutada da proteína. A consequência foi a suspensão da
reacção química, com os tais efeitos dramáticos. “Através de uma única
modificação, podemos controlar o processo de divisão celular”, resume
Hélder Maiato.
Potencial terapêutico
Divulgadas na revista Journal of Cell Biology,
editada pela Universidade Rockefeller, nos EUA, estas descobertas
estiveram na base de um pedido de patente para a Europa, apresentado
pelo IBMC no Reino Unido em Outubro, apenas quatro dias antes da
publicação do artigo. A patente teria ficado comprometida se a
informação tivesse sido tornada pública antes da entrega do pedido.
Feitas
estas duas descobertas de biologia fundamental – primeiro, que CLASP2 é
essencial na divisão celular, segundo, que a introdução de pequena
mutação leva à morte das células –, o que se segue poderá ser a
aplicação deste conhecimento em novas terapias contra certos tipos de
cancro, por exemplo naqueles que têm uma taxa elevada de proliferação
celular. “Deste resultado saiu uma potencial nova terapia. Pode ser
feita uma pequena modificação nesta proteína em laboratório e, ao
introduzir a proteína nas células certas – neste caso, nos tumores –,
poderemos impedir que se dividam”, conta o cientista. “Pode haver
empresas interessadas no uso desta modificação.”
Em seres humanos,
já decorrem ensaios de substâncias que afectam a formação do fuso
mitótico, só que inibem a Plk1, a proteína que desencadeia a reacção
química. A equipa de Hélder Maiato adoptou uma abordagem diferente, ao
actuar sobre a proteína que sofre a reacção química. “Há várias maneiras
de esfolar um coelho”, lembra o investigador.
As imagens de
células cancerosas apanhadas a matarem-se são a prova de que a maneira
portuguesa de esfolar um coelho funciona, pelo menos nas experiências
com células. “Sim, são a prova visível disso.”
Ao microscópio,
captaram-se dezenas de sequências de imagens que dão a ver em filme o
que sucedia às células na presença da proteína mutada. Num dos vídeos,
mais de nove horas depois de terem perdido os dois pólos do fuso
mitótico, elas suicidaram-se. Fim da história e, quem sabe, se o início
de outra sobre um avanço na luta contra o cancro.
* Ciência portuguesa a dar cartas
.
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