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IN "AÇORIANO ORIENTAL"
26/11/12
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Varandas de Pilatos
O que se segue é uma história verídica. Não revelo nomes,
pelo que não cometo indiscrições. Mas não podia deixar de a contar, já
que uma das principais razões pelas quais o mundo não avança é a
tendência que todos temos de olhar apenas para os nossos problemas.
Uma jovem ficou com uma equimose no olho em resultado de uma briga
com o namorado. Não se pode dizer que foi surpreendente; afinal, o rapaz
mudava de temperamento com frequência e ora era muito romântico ora se
exaltava ao ponto de pontapés. De qualquer forma, o ponto desta história
não é julgar este relacionamento; para isso, não faltam alguns
teorizadores da violência que até garantem transformar um abusador num
companheiro em 15 epifânicas sessões de mudança comportamental.
O ponto desta história é que, no dia do “olho negro”, esta jovem
disse “basta” e foi ao hospital. Teve sorte – ou não – e “apanhou” a sua
médica habitual, a quem contou o sucedido. Quando uma vítima de
violência decide contar o que se passa podemos não só admitir que os
factos já acontecem há algum tempo como também temos de ter em conta que
foi preciso ultrapassar muitos sentimentos íntimos para fazer a
revelação, entre eles medo e vergonha. É à conta do pudor que se sente
em contar coisas tão humilhantes e do receio de que possa acontecer algo
pior caso o abusador venha a saber da revelação que a indecisão em
contar se mantém por tanto tempo. É neste silêncio que confiam todos os
que violentam outras pessoas. É neste mesmo tipo de silêncio que confiam
os que abusam de crianças (mas esses inventam ainda a desculpa
adicional da “imaginação influenciável do menor”, muito na moda nos
tribunais e com uma espantosa aceitação por parte dos decisores).
Não é preciso um doutoramento em Psicologia para chegar à conclusão
de que a jovem necessitou de muita força de vontade para falar com a sua
médica nesse dia. A Sra Dra, porém, respondeu que tudo o que diziam
entre aquelas quatro paredes estava abrangido pelo segredo médico e que
não se metia em confusões de namorados, pelo que não podia revelar nada
do que lhe estava a ser confiado: “Mas desejo que as coisas se resolvam
pelo melhor!” Na cabeça da jovem, a conversa das quatro paredes
recordou-lhe um episódio em que também o namorado lhe tinha dito, numa
das suas fúrias, “Tudo o que fazemos aqui ninguém sabe lá fora!” e a Sra
Dra pareceu-lhe tão ambígua e, de certo modo, tão violenta como ele.
Vejamos: se a menina apenas quisesse falar sobre o pesado assunto mas
pedisse à médica que não revelasse nada judicialmente (o que, nestes
casos, acontece às vezes, embora isso vos possa parecer paradoxal e até
pudesse dividir a médica entre estar ao corrente de um crime público e
ter um pedido de segredo) eu entendia perfeitamente que a Sra Dra não
falasse, por respeito ao pedido. Mas, neste caso, a menina pediu
socorro, pediu que fosse relatado o acto. É um chocante conveniente
lavar de mãos desta médica, que, ademais, não põe em causa a veracidade
do testemunho.
O que eu espero, por mero acaso, é que a Sra Dra esteja agora a ler o
jornal, talvez à mesa do pequeno almoço, confortavelmente. E agora,
páre, se faz favor. Repare nos seus filhos, moldados pelas suas acções.
Olhe para a sua filha adolescente. Imagine-a com um olho negro. E agora,
levante-se, vá para o Hospital, vista a bata e faça a sua vida… como
habitualmente. Lave as mãos como se nada fosse.
IN "AÇORIANO ORIENTAL"
26/11/12
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