O Ventríloquo
O país que pensa
assistiu, entre o perplexo e o estarrecido, às declarações do sr.
António Borges a Judite Sousa, na TVI. Perplexo porque viu um assessor
substituir o Governo numa entrevista importante. Estarrecido pela frieza
gélida com que o senhorito falou no extermínio do serviço público de
informação, em troca de coisa alguma. A certa altura da extraordinária
conversa, o sr. Borges, impávido e sereno, disse que a questão dos
despedimentos previsíveis diria respeito ao novo "operador" logo que a
RTP e a RDP fossem desmanteladas. O Governo lavava dali as mãos. Só um
tolo admitiria que o preopinante falava com voz própria. Ele mais não
era do que o eco, à sorrelfa, de Miguel Relvas, dissimulado nos
bastidores pelas públicas razões conhecidas.
Há algo de
desprezível na conduta moral de quem se serve de um outro para dizer o
que, no momento, não está interessado em afirmar; e de repugnante,
naquele que se substitui com a cara, a voz e a ideia. Ambos se equivalem
e ambos são a imagem restituída da baderna a que chegámos.
A esta
farsa não estará alheio o primeiro-ministro. Não passa pela cabeça de
ninguém que o enredo foi montado sem o seu conhecimento. De qualquer das
formas, ele terá de esclarecer o assunto. O sr. Borges, ao falar, como
falou, assertivo e veemente, da privatização da RTP e da RDP, do que vai
mudar e do que vai ser concessionado; dos funcionários que a entidade
"compradora" entenderá, ou não, estarem a mais; da extinção absoluta do
serviço público e da sua eventual entrega a interesses estrangeiros -
disse-o com conhecimento de causa e no registo comum a um governante.
Este
desvio do discurso cultural e político transforma-se num apelo ao
desmantelamento dos percursos habituais das nossas heranças. Além da
gravidade da proposta, e da natureza agressiva do seu conteúdo, que
tende a subalternizar a própria democracia, parece-me insultuoso que
seja um estranho ao Governo a dar notícia dos factos. E a pôr em causa,
com displicente indiferença, a vida de quase duas mil pessoas.
As
atitudes deste Executivo têm dissolvido o pouco que nos restava de
orgulho nacional. Nenhuma neutralidade pode arbitrar estas pequenas
infâmias. E são-no porque o desdém demonstrado pelos governantes parece
querer criar as suas próprias razões.
A mística do neoliberalismo,
perante um mundo sem pátria e de pensamento único, tem como objectivo o
domínio pela obediência, pela submissão e pelo medo. O papel do sr.
António Borges é o de um factotum desprovido de toda a singularidade. Em
causa estão a grande crise de valores de que enferma a nossa época e a
supremacia da finança sobre a diversidade civilizacional. Alegremente,
caminhamos para o desconhecido, sabendo-se, de antemão, pelo que resulta
da experiência, a configuração da catástrofe.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo acordo ortográfico
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
29/08/12
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