As mulheres, a crise e a pós-crise
Um dos efeitos perversos da crise é fixar as mulheres no trabalho não pago, com um apelo às virtudes dos papéis tradicionais da 'dona de casa'
Acabo de participar no Congresso Internacional da Associação dos Direitos das Mulheres no Desenvolvimento, em Istambul. Mais de 2500 mulheres ativistas, vindas dos mais diferente países, reuniram-se para discutir e desafiar os obstáculos económicos, políticos, culturais, religiosos que continuam a bloquear a sua plena cidadania. Estávamos reunidos num país onde as mulheres não são mais que 25% da força de trabalho, a violência contra elas aumenta, o partido no governo mostra muito pouco entusiamo pelo seu direito à igualdade e o primeiro-ministro as exorta a terem pelo menos três filhos. Aliás, o desagrado que este congresso causou às autoridades fez com que muitas mulheres (como as moçambicanas) vissem os seus vistos de entrada recusados.
O impacto da crise europeia foi um dos temas do Congresso, analisado no âmbito mais amplo de outras crises que o mundo atravessa. São muito diferentes as trajetórias de vida das mulheres em diferentes partes do mundo, mas têm algo em comum, ainda que a intensidade varie muito. Mesmo em tempos de relativo desafogo social, continuam a ser vítimas de discriminações sociais, salariais e no acesso à terra ou à propriedade; de assédios sexuais; de violência no espaço doméstico e no trabalho; e do bloqueio no acesso à esfera púbica e à atividade política.
Em tempos de crise, este sofrimento injusto não só se mantém como até se agrava. Nos países do sul global, a crise ecológica e alimentar tem um impacto específico nas mulheres africanas, asiáticas e latino-americanas que têm a seu cargo a busca da água, boa parte das tarefas agrícolas e a preparação dos alimentos. Nos países do norte global, a crise financeira veio afetá-las de múltiplas maneiras, algumas delas pouco visíveis. Mesmo quando não são as primeiras a ser despedidas, têm que se desdobrar em novas atividades pagas e não pagas para manter o orçamento familiar acima da asfixia. São limpezas, costura, explicações, cozinhar para fora, babysitting, artesanato, agricultura de varanda, etc.
Por outro lado, os custos sociais e psicológicos da crise no bem estar das famílias recaem sobretudo nas mulheres. Exigem delas um esforço adicional numa área da economia que os economistas convencionais nunca reconheceram e sem a qual as sociedades não subsistem: a economia do cuidado. É um conjunto vasto de trabalho não pago que serve as crianças e os velhos da família, que gere a depressão ou a agressividade (ou ambas) do companheiro stressado pelo emprego ou pela falta dele, que atende às necessidades dos filhos casados e agora necessitados de algumas refeições decentes por semana ou do apoio da família (quase sempre eufemismo de mãe) nos tempos livres dos filhos antes passados nas atividades extra-escolares, no ballet ou no ténis, etc.
Mas não esqueçamos que a economia de cuidado pode circular em dois sentidos, de pais para filhos e de filhos para pais, e que o verdadeiro colapso social ocorre quando ela já não é possível em nenhum dos sentidos. A esta economia do cuidado também chamamos "sociedade providência", porque em Portugal ela sempre teve de colmatar as fortes lacunas do Estado-providência que, ao contrário do que clama a direita, foi sempre fraco e sempre se apoiou na proteção social a cargo das famílias. Um dos efeitos perversos da crise é fixar as mulheres no trabalho não pago e fazê-lo com um apelo às virtudes dos papéis tradicionais da "dona de casa".
As mulheres, que suportam um fardo desigual quando a austeridade imposta pelo neoliberalismo desaba sobre as famílias, sabem bem que a solução é lutar por um outro modelo económico que elimine as causas do fardo: redução drástica dos orçamentos militares, reconhecimento de outras economias baseadas na reciprocidade e na dádiva, serviços públicos eficientes, tributação progressiva, direitos de cidadania eficazes, incluindo os direitos reprodutivos e sexuais, que libertem as mulheres do jugo do sexismo e do fundamentalismo religioso (católico ou muçulmano).
IN "VISÃO"
03/05/12
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