Cinco Sentidos
Freud terá dito que «por vezes um charuto é só um charuto» a alguém que lhe perguntara por que andava sempre com um na boca.
Estômago
No Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres houve várias acções que talvez tenham passado um pouco despercebidas. Uma delas foi o Opinião Pública na SIC Notícias, conduzido com sensibilidade e profissionalismo por Teresa Dimas. Foi difícil ouvir os testemunhos de tantas mulheres maltratadas. O sentimento que me ficou foi o de vergonha por tão pouco ser feito neste país por uma parte da população que é tratada sem qualquer dignidade ou justiça. É neste sentido que saúdo as declarações de António José Seguro, que disse no Facebook que «a violência contra as mulheres constitui uma grave violação dos direitos humanos, limitando-as no exercício das suas liberdades fundamentais». O alerta tem a vantagem de também se dirigir aos homens, mais uma vez deixados de lado na mais recente campanha contra a violência doméstica. Nela vemos imagens de mulheres mortas pelos companheiros. Tenho dúvidas quanto à eficácia de mais uma campanha dirigida às vítimas. As imagens de violência não são dissuasoras para os criminosos. Muito melhor seria a aplicação de penas de prisão efectiva para os agressores. Não custa mesmo nada experimentar.
É a língua, senhores
Um estudo realizado no Reino Unido por um canal de televisão concluiu que uma em três pessoas não diz «thank you». São usadas outras palavras, que vão do monossílabo «ta», ao célebre «cool» e até ao francês «merci». Não percebi qual seria o objectivo deste estudo que nos podia levar além da verificação simples de que as línguas faladas são vivas, mudam e encontram outras palavras para expressar os mesmos sentimentos ou estados de espírito. Ainda há pouco, uma gentileza rodoviária era expressa com um movimento de cabeça ou com uma afável mão aberta. Agora só vejo polegares a imitar os Like! do Facebook. Imagino que sirvam para expressar apreço pela amabilidade na estrada. Já me aconteceu ser agraciada com uma espécie de punho ‘rapeiro’, com o polegar e o dedo mindinho esticados e a mexer. Em Portugal, talvez para ganhar tempo, por vezes ouço «brigado» e «tubrigada». Não restam dúvidas de que estas formas de boa educação não são as mais aconselháveis. Mas quem somos nós para lutar contra as massas populares que vão estabelecendo, como sempre fizeram, os modos e os usos da língua? Não nos deixemos influenciar e não seremos invadidos pelos seus costumes.
Mau ambiente
O vídeo com os universitários que não sabem a capital de Itália nem o nome de quem pintou a Mona Lisa tem suscitado reacções indignadas com a ignorância da juventude. A questão é se parecerá assim tão impossível quanto andam a fazer crer que os universitários nada saibam. Afinal, todos os anos nos chegam inquéritos parecidos com respostas similares. O problema não é de agora, e não tem necessariamente que ver com o pouco que se sabe, mas com a total falta de curiosidade por se saber seja o que for. É provável, no entanto, que os universitários de hoje saibam tanto como os seus pais. Levamos o tempo todo a reclamar da promoção da mediocridade e depois ficamos boquiabertos com a falta de interesse pelo mundo revelada por rapazes e raparigas de vinte e tal anos. É natural que um ambiente de falta de amor pelo conhecimento resulte em fornadas de gente que não estão disponíveis para a aprendizagem. O cenário é negro, bem sei, mas é uma realidade. Portugal ri imenso com a Cátia, coitada, que não sabe o que é um alpendre. Mas fica chocado quando há universitários a mostrar aquilo que o país premiou durante anos: mediocridade e falta de brilho.
Do lado de Freud
Um Método Perigoso, de David Cronenberg, tinha tudo para correr mal: um filme de época, falado em inglês quando os intervenientes eram alemães e que pretende contar a amizade complexa entre Sigmund Freud e Carl Gustav Jung. Além do mais, Um Método Perigoso é a adaptação da peça de teatro The Talking Cure, de Chistopher Hampton, que por sua vez é uma adaptação do livro A Most Dangerous Method, de John Kerr. A variedade de interpretações resultou num filme bem construído e credível. Até o abuso da leitura de cartas é tolerado. É através delas que intuímos as dificuldades de entendimento entre o pai da psicanálise, Freud, e aquele que primeiro aplicou o seu método em Sabina Spielrein, Jung. A cena que revela o que os separa é aquela em que Jung tem um palpite de que a madeira na biblioteca de Freud vai estalar de novo. Freud despreza a sua superstição e falta de rigor científico. É o mesmo desprezo dos freudianos por Jung que dura até hoje. Freud terá dito, no entanto, que «por vezes um charuto é apenas um charuto» a alguém que lhe perguntara qual era o significado de estar sempre com ele na boca. Mas não se atreveu a escrever a frase em lado nenhum.
Alegria e pequena desilusão
Recebi uma prenda de Natal e não resisti a abri-la logo. Era a versão portuguesa de Vida e Destino, de Vassili Grossman, publicada pela Dom Quixote, e traduzida pela excelente dupla Nina Guerra e Filipe Guerra. Há muito tempo que esperava por este livro. Grossman é um autor russo e judeu, comunista desde o primeiro instante. Ter sido testemunha do estalinismo contribuiu para ser muito crítico do regime, acabando por ser banido depois da guerra. Vida e Destino, a sua obra maior, de 1961, foi proibida e destruída. Só em 1980 começou a ser lida e conhecida na Suíça. Trata-se de uma obra monumental, comparada à Guerra e Paz de Lev Tolstói e com um estilo que Zvetan Todorov equiparou ao de Tchékhov. As vidas entrelaçadas das mais de 150 personagens requerem um exercício mnemónico considerável. É por isso que as traduções em castelhano e inglês, que são as que conheço, têm no final pequenas biografias de cada uma das personagens. É uma tarefa árdua para os editores e uma cábula generosa para os leitores. Mas este mitzvah literário não nos foi concedido na versão portuguesa. Seja qual for a sua justificação, austeridade ou preguiça, é uma pena que seja assim.
IN "SOL"
06/12/12
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