07/09/2011

INÊS PEDROSA



Contra a rotina, 
               trair, trair

Corações ao alto – há ramos de negócio que prosperam no deserto da crise. A traição, por exemplo. Não me refiro à traição económica, política, social, mas à outra, mais antiga e corriqueira: a facadinha no matrimónio.

Há semanas, uma reportagem de Liliana Garcia no SOL revelava-nos que o site Secondlove, dedicado a, como o nome indica, conseguir um segundo amor para os seres já equipados com um primeiro, inaugurado em Portugal a 1 de Junho com 12 mil inscritos, atingiu o bonito número de 35.500 utilizadores ao cabo de apenas dois meses de existência.

Tudo no maior recato – a maioria dos utilizadores dispensa fotografia, não vá o feliz cônjuge navegar nas mesmas águas – e, acima de tudo, preservando o decoro e a elevação moral. A porta-voz do site explica à reportagem que já suspenderam muitos membros, «em situações em que suspeitávamos tratar-se de prostituição ou de haver uma linguagem menos própria». De facto, quando o nosso governo multinacional nos instiga a deixar de consumir, seria pouco patriótico recorrer à prostituição, actividade que, tal como a banca, está isenta de impostos extraordinários. E quem entender que o sexo combina bem com a tal linguagem «menos própria» que se arrede deste portal de infidelidades seguras e bem regulamentadas.

Dois terços dos frequentadores são homens que se definem como «casados e felizes» e que desejam «fugir à monotonia que a vida nos impõe». A monotonia é uma imposição da vida? Supunha que era uma das doces alegrias dela.

NOS ROMANCES de Camilo Castelo Branco que leio todos os Verões, precisamente porque são, entre muitas outras coisas, um antídoto vibrante contra os picos da monotonia, encontramos muitos homens casados com amantes. Mas, pelo menos, não se dizem «felizes»; têm a coragem de se reconhecer desgraçados, porque as mulheres legítimas que compraram aos pais não gostam deles. A outra casta de infiéis dos romances de Camilo é a dos apaixonados impedidos pela bruta sociedade de viverem à luz do dia o seu amor.

«Ao fim de algum tempo, até a perfeição satura», confessa um utilizador. Alega que é «complicado gerir estas emoções e, depois da primeira traição com sucesso, começa a ser difícil parar». O que é a perfeição? O que é uma traição com sucesso? A única coisa que encontro no fundo destes depoimentos é o pútrido cheiro do medo, da miúfa, do pânico pequenino. Cem mil inscritos até ao fim deste ano, é o objectivo que a porta-voz do site define. A bem do sossego das famílias e da luta contra a «vulgaridade».

Hoje, ao contrário do que acontecia no camiliano século XIX, não há algemas sociais que empurrem o amor para a clandestinidade – mas dir-se-ia que o amor emigrou para outro planeta. Uma das frequentadoras do Secondlove, casada há vinte anos, com três filhos e licenciada em Psicologia, declara: «Nesta fase da vida é muito difícil deixarmos tudo por uma grande paixão, até porque sabemos que ela acaba». Uma portuguesa que sabe mais do que o Camilo, a Sophia e o Camões. É obra, embora eu continue a preferir os cursos de psicologia deles. Custa-me a crer que se possa ser feliz com «a família» ao mesmo tempo que se dedilha um site em busca de encontros esconsos. Que ideais e sonhos desenvolverão os três filhos desta mulher pragmática? O que lhes dirá ela sobre o amor? Não faço ideia, mas a verdade é que o negócio vai de vento em popa. Consequência ou causa da crise? Tudo isto me parece triste. Rotineiro e triste, muito triste. E nem sequer é fado.

IN "SOL"
05/09/11

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